JESUS COM CACHAÇA
Era, enfim, Natal, o que levava o exausto pesquisador a desacelerar-se dos encargos e tornava possível dar-se mais um pouco à meditação. Geógrafo, tinha a inevitável tendência a olhar a cidade, pensando nas suas redes e nós, nos fluxos, nas territorialidades, nas disputas e tensões acolhidas pelo espaço. Queria seguir, de vez em quando ao menos, apenas espiando lojas e luzes. Não havia a neve das paisagens natalinas do norte, mas chuviscos anunciando que era dezembro e verão, às vezes pingos transformados de repente em potente tempestade e verdadeiro caos pelo volume de águas nas ruas, arrastando automóveis e, eventualmente, engolindo pedestres. As forças celestes davam enfim, o ar da graça informando aos mortais sua presença e cobrando o preço por muitos desvios de córregos e má ocupação do território.
O desemprego tão grande, a fome aumentando, um cinismo explícito do governante a sonegar vacina às crianças, depois de retardar ao máximo a vacinação de adultos enquanto punha levas do exército a produzir cloroquina... Dizer feliz Natal parecia impossível, porque não se pode estar feliz com tanta miséria e descaso, nem com a ignorância que ronda aqueles que ainda apoiam esse regime de incompetência e terror. Guardava, contudo, esperanças e buscava alimentar-se de energia para o próximo ano, quando virão as eleições e, com elas, golpes baixos, novas fake news e ameaças de golpe. Não era preciso ser dotado de poderes mediúnicos para prever o futuro próximo. Na TV, vão contratar um pai de santo, uma cigana, um tarólogo, todos confirmando o que ele, sem búzios e compreensão de desenho das linhas das mãos, podia antever no desenho político. O ano que findava teria sido apenas ensaio. Quem sabe a energia demandada para o tempo de luta se escondesse nos panetones.
Era Natal e meditava sobre a data. As festas, afinal, podem ser boas, com amigos e familiares por um átimo de tempo ignorando o contexto para concentrar-se no instante de estar junto e dizerem em uníssono que se querem bem. Tanta energia de amizade e carinho pode gerar uma boa reserva para o tempo de vacas magras, porque o fascismo frutifica até nas tias que pareciam mais afetuosas embalando seus tricôs.
Chegara à casa dos primos bem cedo e, por conta de ser véspera do Natal, comemoraram a ocasião e o encontro com cervejas. Uma, duas, dúzias. Saíra sorridente, no meio da tarde, com a alegria dos bêbados, sem mais olhar a cidade ou pensar nas suas contradições, nos seus fluxos, nos seus nós, só buscando a continuidade das ruas, sem mais ver luzes além daquelas que importavam: vermelho e verde dos semáforos. Também ignoraria Papai Noel, duendes e renas colocados nos canteiros pela boa administração da cidade.
Já na casa da mãe no fim da tarde, retomaria as comemorações com os parentes que chegavam. Mais cerveja, mais risos, mais animação, abraços, todos já esquecidos de máscaras e álcool da pandemia. Uma, duas, dúzias. Antes da meia-noite, tombaria sonolento, sonhando distrações dos bêbados, confusão de mundos, a terra girando apressada, como numa crise de labirintite em nível hard. Não ouviria fogos de artifícios que inundaram a celebração do nascimento de Cristo por volta da meia-noite. O deus que nasce menino, na classe trabalhadora, como migrante e sem-terra aportou novamente nos corações, ao menos naquele instante, enquanto ele dormia. Deveria estar atento, espiando estrelas, como o fizeram os reis magos, mas a cerveja...
Concluiu ao acordar na manhã seguinte, com dor de cabeça e o corpo quase morto, que não dá certo misturar Jesus com cachaça. Contava com uma epifania, mas, também dessa vez, não vingou. No sonho bêbado, trombetas celestes juntaram-se ao pagode de Arlindo Cruz. Parece que Deus andou por lá.