NATAL
Eu sabia escrever. O coelho é bonito. A casa é bonita. Todas as frases assim: sujeito, verbo de ligação, predicativo. Resolvia o problema das frases, acertava ditados. Creio que não tinha problemas ortográficos. Sabia que antes de p e b se escrevia com m. Não me lembro se já havia compreendido as regras de acentuação. Creio que a memória visual ajudava a registrar as palavras sem grandes percalços. Não escrevia textos. Não sabia que podia falar algo que me traduzisse, coisa que aprendi muito tempo depois, quando desconfiei que os textos não necessariamente deveriam ser escritos em terceira pessoa e que fosse mais que uma soma de frases enfileiradas. Eu era boa de obediência e seguia a escola em boa marcha e ritmo, como o daqueles muitos dias em que ficávamos como soldados no pátio, sem poder errar o passo, sob olho atento de diretores e pedagogos. Não sabia que se podia escrever fora de um comando didático. O tempo, afinal, ensina.
Minha mãe dizia que ler era algo mágico e que, uma vez aprendido, um mundo novo se abriria para mim. Ainda não tinha encontrado a chave. Decodificava tudo. Era condição para aprovação para a segunda série. Diante da diretora, eu sozinha na sala com ela no colégio metodista, deveria provar que tinha sido alfabetizada. Nada para mim fazia sentido naquela tarefa mecânica, mas dei conta dos protocolos. Pus, dias depois, vestido vermelho, capelo vermelho, estava na cerimônia, devidamente registrada por uma ida à Foto Brasil. Magrela, vestido curto e pernas finas. Diploma com lacinho. Tudo em pose em fotografia em preto e branco. Registro do sucesso. Aprovada.
Os pais deveriam comprar um livro, que receberíamos no dia dessa primeira cerimônia de formatura. Era dezembro. Sentei-me ao lado da árvore de Natal, com o livro na mão, distraída. Minha mãe e Luisinho iam enfeitando a árvore, arrumando o presépio e eu comecei a decifração, sem saber o milagre que se sucederia um tanto depois. Eu leria então o livro todo, perseguindo uma história de saci Pererê, entendendo só naquele momento o que era efetivamente ler. Ler coisas que tinham sentido, não que Eva teria visto Ivo. Ou que Ivo teria visto a uva.
Esse Natal foi um dos muitos inesquecíveis. Minha mãe tinha prazer em enfeitar a árvore, a cada ano com uma novidade. Meu pai punha luzes na amendoeira. As noites de dezembro eram mágicas. Jesus deitadinho em sua manjedoura era um deusinho bonito, um pequenino bebê com quem eu podia respeitosamente brincar. Aonde foi ele parar?
Não tenho a competência de minha mãe para cuidados natalinos. Nem cuido tanto dos presentes como meu pai. Mas hoje, olhando para meu cacto iluminado na varanda quando deveria dar uma aula que não vingou por conta da Internet, espiando um papai Noel pendurado na janela, me lembrei daquele dezembro. O de quando eu podia estar naquela nossa casa, o de ser criança, o de descobrir para sempre os encantos da leitura, o de amar o Natal.
Hoje ganhei três livros. Um deles, dedicado a mim. É de novo, ainda que outro, tempo do Natal. Alegro-me com o cacto iluminado, com a reserva de encanto acumulada há muito tempo. Há coisas que, afinal, levamos para a vida toda, ou ao menos enquanto houver memória. História.