SEMIFIEL
Semifiel, explicava ele, com sua classificação da ordem dos afetos e pequenos desvios da norma dos bons costumes. A fidelidade não poderia ser compreendida no preto e no branco, categoricamente. Havia que considerar nuances. Olhar as moças discretamente, quando a esposa se distraía, por exemplo, nem seria delito, mas seria já um breve indício de infidelidade branda, porque não há, como todo mundo sabe, porteira para os olhos: eles simplesmente estão no mundo para ver, de onde deriva o contemplar, o encantar-se, o que já é efeito da apreensão estética, questão de natureza cognitiva. E são muitas as moças, com diferentes estilos, cortes de cabelo, modo de enfeitar-se com vestidos, colares e brincos, distinto tom da voz, gestualidade, olhos, um jeito de andar e de ser etc. Como não ver, avaliar e, em alguns casos, suspirar?
Quando o padre o fez prometer fidelidade na saúde e na doença, na juventude e na velhice, na pobreza ou na riqueza, não entrara em detalhes sobre a compreensão mais extensa do termo. Fiéis apenas a Deus, ao menos em tese, os párocos não sofrem dessas problemáticas. Ou disfarçam bem. Ou evitam comentários sobre suas próprias paixões. Podem ainda se valer de penitências, jejuns e orações, estratégias para as quais ele, o semifiel, não guardava tanta aptidão. Tinha pouca energia para constância, pouca determinação para projetos, abandonados sem remorsos diante das primeiras dificuldades. O último fora a candidatura a vereador. Usara a desculpa da pandemia para não fazer campanha pelas ruas. Ficaria restrito à Internet. Contabilizou sem sofrimento os votos minguados e possíveis traições. As pretensas amizades foram, afinal, pouco fiéis.
Nunca lhe passara pela cabeça perguntar a esposa sobre seu próprio desejo, porque o casamento de anos havia entrado há muito na fase da amizade, mas aquela amizade que não permite tanta cumplicidade como a que tinha com os colegas do futebol. Certamente ela guardava seus segredos, mas isso seria melhor ignorar, porque precisava imaginá-la lá, sempre a mesma, sem surpresas, a sua espera, o jantar preparado, ela olhando a TV, a casa quieta e arrumada. Conversariam sobre os rumos da política nacional, a inflação, a chuva, os filhos, as noras, os netos. Decidiriam juntos sobre os preparativos para o Natal. A sobremesa. A ida a uma confraternização.
A semifidelidade assumida mas não publicamente declarada permitia que se envolvesse, aqui e ali, com um caso extraconjugal. Não era capaz de amor, de fato, só transitório desejo. Ficariam juntos, sem compromissos, sem promessas, enquanto durasse o que tinha que durar. A única obrigação seria a discrição e o silêncio. Nada de mãos dadas. Nada de encontros ao ar livre. Nada de almoços e jantares. Só a alcova.
Sempre fiel, a esposa olhava exausta para aquela relação insípida. Contabilizava os custos de uma separação, o cansaço, as justificativas a dar à família numerosa, as prováveis condenações. Seu coração ia longe, pensando nos sonhos perdidos. Refugiou-se, um tempo, na literatura, mas ela já esgotava sua fórmula. Todas as moças virgens, homens fantásticos, ambos jovens e belos. Onde estava a escrita sobre a vida dos reles mortais, da gente de meia-idade, com rugas e exaustão? Aquele marido frouxo, a monotonia, a falta de desejo. Inquietava-se, em silêncio e, como bem explica o pretérito imperfeito, essa sensação se prolongava, produzia estragos. Água mole em pedra dura...
Cortou os cabelos, arrumou mala e cuia e saiu de casa. Não podia trair mais a si mesma. Que Joca continuasse com suas amantes, como bem sabia. Ela talvez encontrasse os seus.