A PROVA
A menina ia num doce balanço, não a caminho do mar, mas pelo meio da feira. O corpo não era dourado, mas pardo, bem magro, destacando-se nele os ossos salientes e as costelas à mostra, tudo bem marcado pelo vestido curto e grudado à pele pela chuva fria que lhe escorria dos cabelos emplastrados. Os seios de adolescente, começando a aparecer, enrijeciam-se ao contato com a água fria e espremiam-se contra o tecido de sua blusa, agora transparente.
Enquanto caminhava pela feira a menina ia fazendo um retrospecto de sua vida. Desde pequena atendia por Mári, forma abreviada do nome Mariangela, assim mesmo, sem acento – que ela não conseguia pronunciar, pela extensão. Nascera de família humilde, na zona rural do Município do Rio de Janeiro e crescera em casa muito simples, construída toscamente por seu pai, num terreno baldio, cujo dono jamais o reivindicou. Mesmo não tendo ido à escola aprendeu bastante para a vida dura que teve de enfrentar, sem qualquer contato com os objetos e produtos que a pequena televisão de sua casa mostrava.
Os sonhos limitavam-se à posse de uma roupa um pouco melhor do que aquela que a mãe conseguira com os vizinhos ou de ter sua boneca de palha transformada na Barbie dos comerciais que ela já vira em velhos outdoors.
Ajudar a família a sobreviver passou a ser rotina para Mári, desde muito cedo. Ela vendia salgados que a mãe fazia e tomava conta de vagas de carros, disputando com os meninos maiores a preferência dos motoristas, muitas vezes no braço.
Vida dura que lhe rendia alguns trocados, muitos arranhões e manchas roxas pelo corpo. Juntando com o que a mãe conseguia ganhar lavando e passando roupa para a vizinhança, mal dava para sustentar a todos, já que o pai, por ter caído de andaime de obra, ficara inutilizado para o trabalho.
Seus pensamentos foram interrompidos pelo pregão de um vendedor à sua frente:
- Olha o limão! Quem vai querer? Bom pra peixe, bom pro peito, bom pra garganta. Tá na promoção!
Mári desviou-se do ambulante e seguiu olhando as barracas.
“ ‘magina chegar em casa com uma redinha de limão no dia de hoje. Não mesmo!”
Ela trazia uma ideia não bem definida e ainda não sabia como aplicá-la para conseguir o que mais queria naquele momento. Apesar da vida pobre, jamais cometera qualquer espécie de ato indigno porque a mãe a criara dentro de padrões éticos bem rígidos.
“ Somos pobres, mas honestos” – repetia sempre para a filha.
“Tenho de dar um presente pra minha mãe, hoje! Ah, se tenho! Alguma coisa que ela ainda não tenha recebido antes. No ano retrasado foi uma colher de pau e no ano passado, uma bolsinha de moedas que ela quase não usa.
Para conseguir juntar dinheiro e comprar a bolsinha, Mári tivera de brigar com os meninos do estacionamento. Só que agora, justo no dia do aniversário da mãe, não ganhara uma única moeda. Os salgados que trouxera ficaram amassados quando o homem arrancou com o carro e a jogou contra o meio-fio, antes que ela pudesse lhe oferecer os bolinhos de carne. Pela cara que fez, o motorista deve ter pensado que era assalto.
Naquele dia, nada dera certo. Os pontos de estacionamento estavam todos ocupados por meninos bem mais fortes do que ela, e assim a féria ficara a zero. Só lhe restava procurar naquela feira alguma coisa para dar de presente à mãe.
“Ficar sem nada é que ela não vai” – resmungou a menina.
Caminhava preocupada quando bateu os olhos naquela pintura de fruto: uma enorme maçã, vermelha com matizes amarelos. A maior que ela já vira na vida.
“É esta que vou dar pra minha mãe. Como é linda. Ela vai amar, mas como pagar, se hoje não ganhei nada?” – pensava Mári, à medida que se aproximava da barraca.
A cabeça ia a mil e a decisão precisava ser tomada rapidamente. Parou a um passo da fruta e, num movimento inesperado, tomou-a nas mãos, disparando pela feira.
- Pega o larápio! - gritava o barraqueiro, livrando-se do avental e tentando acompanhar a velocidade da menina.
Mári correu com todas as forças que tinha até alcançar um pequeno bosque que ladeava a feira. Sentindo-se segura ela parou e, enquanto recuperava o fôlego, pôs-se a admirar a maçã.
“Além de grande é pesada. Já vejo a mãe comendo aos pouquinhos, saboreando até acabar, sem deixar um carocinho de fora. Acho que ela vai gostar muito deste presente.”
De repente, sem que ela percebesse a aproximação de qualquer pessoa, uma voz grave e suave a cumprimentou:
- Bom dia, menina. Que bela maçã você tem nas mãos – falou um homem alto, magro, bem vestido, de excelente aparência e que se encontrava exatamente atrás dela.
Mári empalideceu. Estava sentada em uma grande pedra, sem qualquer possibilidade de fuga. Conseguiu perguntar, quase sem voz:
- O senhor vai me prender?
- Por que eu prenderia uma jovem que se prepara para comer esta bela maçã?
- Mas o senhor viu, não viu?
- Eu não vi, mas se você contar o que acha que eu vi, vou gostar.
- Ah, eu vou contar tudo. Ainda que o senhor me prenda. Estou cheia de remorsos.
- Espere um pouco enquanto eu me sento aí ao seu lado - disse o homem.
Após acomodar-se na pedra junto a Mári, ele ficou olhando para a menina, de um modo tão gentil, que ela se pôs a contar toda a sua vida até chegar ao episódio da maçã furtada. Estava tão envolvida no próprio relato que nem percebeu que o homem lhe havia tomado o fruto da mão e o comera todo, não deixando nem os caroços, com ar de extrema satisfação.
Quando terminou a história é que Mári deu por falta da maçã.
- Vamos embora, menina. Vamos embora daqui.
- Devagar aí, seu moço. Eu lhe contei toda a minha história e o senhor se aproveitou da minha ditração e comeu o presente que eu ia dar pra minha mãe! O senhor é um mau-caráter!
Nesse momento ouviram passos na mata. Eram do barraqueiro, que seguira a menina.
- Ah, sua ladrazita! Peguei-te. Devolve-me a maçã que furtaste da minha barraca. Deixa-me cá ver a tua bolsa, que o fruto aí deve estar.
O feirante avançou em direção à menina e tomou-lhe a pequena bolsa de pano onde ela levava os salgados. Evidentemente, nada encontrou.
- Mas eu podia jurar que a maçã estaria contigo, ladra miúda – gritou o feirante já em estado de exaltação.
Nesse momento o homem, que ao lado de Mári a tudo assistia, interrompeu-o.
- Caro senhor. Acaba de fazer grave acusação a esta jovem, menor de idade, na minha presença. Saibaque sou juiz da Vara de Órfãos e exijo que o senhor apresente prova concreta do furto que diz esta menina ter praticado em seu estabelecimento comercial. Caso contrário, resta-lhe retratar-se, pedindo desculpas a ela, agora mesmo. Se não o fizer, prendo-o por acusação leviana a menor. Vamos, estou aguardando. Prova ou desculpas.
Mári estava perplexa. Chegara a ter ímpetos de avançar naquele homem porque comera o presente que ela iria dar à mãe e agora ele a defendia.
O feirante, a custo, rosnou um pedido de desculpas, sem mesmo olhar para a menina e retirou-se, resmungando:
- Hoje não é meu dia. Furtam a minha mercadoria e ainda me vejo obrigado a pedir desculpas ao larápio!
Tão logo o homem desapareceu no meio do mato, Mári voltou-se para agradecer, mas apenas encontrou sobre a pedra, um pequeno envelope com duas notas de cinquenta reais.
A menina, emocionada, recolheu o dinheiro e caminhou em direção a um pequeno quiosque que havia ali perto. Quando se dirigiu à dona da loja dizendo que queria mandar flores, recebeu um olhar de desconfiança.
Mári estendeu-lhe as duas notas e arrematou, com altivez:
- Tudo isso de flor. São para minha mãe. Mande entregar no endereço que está nesse papel. Pra hoje!
Recolheu o recibo e já ia embora, feliz, quando uma inquietante incerteza invadiu-lhe a cabecinha:
“Sei não, mas acho que a mãe ia gostar muito mais daquela maçã...”