Adélia veio para Lisboa pela mão de uma das suas irmãs. No total, tinha mais duas e ainda quatro irmãos, perfazendo uma irmandade de oito pessoas, todas muito unidas.
As contingências da vida obrigaram a maioria a tentar a sorte noutros países, emigrando ainda novos. Em Portugal apenas ficou a irmã que a ajudara e vivera sempre em Lisboa, e um irmão, o mais velho, bem estabelecido na vida e que morava perto da mãe deles, que cedo enviuvara.
Todos adoravam a mãe, uma transmontana de rija tempera, que praticamente os criara sem ajuda e lhes dera a escolaridade possível.
Adélia casou cedo e teve uma menina, que criou com total dedicação, uma vez que o marido vivia num mundo só dele. As discussões sucederam-se ao longo dos anos e assim que a filha atingiu a adolescência separaram-se, ficando ela com a casa comum e o encargo bancário da mesma.
Adélia trabalhou muito tempo numa fábrica, como operária, cumprindo sempre com dedicação as suas obrigações.
Entretanto veio a crise económica e a fábrica em questão faliu, lançando-a no desemprego, apenas atida ao magro subsídio que a Segurança Social lhe pagava e tendo a filha a estudar. O marido só a custo lhe pagava a pensão alimentar devida pela existência comum da filha, tendo a isso sido obrigado pelo tribunal.
Muitas vicissitudes empurraram-na para a solidão. Como forma de a resolver, conheceu um homem que lhe agradou bastante e a seduziu, conseguiu tornar-se seu namorado, embora sem fazerem vida conjunta. Lavava-lhe a roupa e aquecia-lhe o corpo...
Entretanto, Adélia conseguiu emprego como cuidadora de pessoas idosas e assim equilibrou as suas contas, pois a filha entrara para a faculdade, numa cidade do centro do país, o que representava um encargo suplementar. Mesmo assim conseguiu pagar o remanescente da dívida da casa e foi vivendo num equilíbrio económico periclitante, sempre com fortes sacrifícios.
Passou um ano, passaram dois…
Num dia de Janeiro, em que se lembrou de conselhos que ouvira na TV relativos aos cuidados devidos pela despistagem do câncer da mama, fez a palpação e muito surpresa por detetar um forte inchaço num dos seios, até porque tinha feito um exame radiológico há apenas dois meses, tendo a médica na altura lhe comunicado que estava tudo bem, foi à sua assistente de família. Esta assustou-a, disse-lhe que tinha de repetir todos os exames e com urgência.
Em pânico, escondeu durante algum tempo à família, mesmo à filha, mas perante os resultados avassaladores que lhe chegaram às mãos, confidenciou-lhe a gravidade da situação. Já havia um outro nódulo, grande, no outro seio e o primeiro crescera bastante.
Chorou, chorou muito…
A filha e depois pessoas amigas, a quem transmitira a situação, apontaram-lhe as possíveis causas do seu infortúnio - o desemprego forçado, o divórcio turbulento e o stress acumulado por outras situações…
O tempo decorria, a sentença de uma doença muitas vezes fatal pendia sobre a sua cabeça, estragando-lhe todos os sonhos futuros, com a agravante da pandemia que entretanto se instalara e entupia os serviços hospitalares (ela não tinha posses para recorrer ao setor privado e entretanto fora obrigada a pedir baixa médica, pelo que a Segurança Social lhe iria pagar mensalmente um magro subsídio), tudo era muito demorado.
Várias consultas não deixaram dúvidas sobre o que a esperava: tratamento com quimioterapia, muito agressivo dada a gravidade da situação (já estava bastante metastizada, o câncer espalhara-se por vários órgãos) e depois mastectomia total e radioterapia.
Aceitou todos os sacrifícios, as náuseas e vómitos, as noites sem dormir e o mau estar permanente. Foi deveras penoso o seu caminho, muitas vezes sem o poder partilhar...
Por fim, concluiu o último ciclo e apesar da menor disponibilidade dos serviços hospitalares, ela foi operada, apesar de quase dois meses depois do previsto.
Outros dois meses após a cirurgia, lutadora como sempre fora, aceitou sem relutar um tratamento extra com quimioterapia, desta vez por via oral, devido ao facto da situação pouco ter melhorado. Depressa constatou dos efeitos secundários do mesmo, com feridas nas mãos e nos pés, causando-lhe grandes dores e inoperância dos membros.
A família apoiou como pôde, mas a vida estava difícil e a pandemia impusera grandes limitações na circulação, tanto em Portugal como em termos europeus.
A filha inclusive, acabou por perder o ano, devido às constantes faltas para apoiar a mãe, tinha de ser ela a dirigir o carro nas constantes deslocações ao hospital e entretanto o namorado sumira…
Adélia acabou por ficar retida no leito, sem forças para lutar mais.
Durou apenas um mês, nunca chegando a terminar o segundo ciclo oral da quimioterapia, sequer fazer o tratamento de radioterapia.
A médica assistente disse então à filha que Adélia estava toda contaminada, o PET que fizera não oferecia dúvidas.
Percebia-se o seu sofrimento pela cor pálida e pela magreza extrema do seu corpo, um pequeno vulto inerte na cama.
Faleceu numa manhã de Outubro, a dois dias de completar o seu aniversário, precisamente um lustre.
Tal como a muitos que a conheciam, no funeral impressionou-me por tudo, pelo caixão que junto da campa à espera de ocupação, a filha chorosa que não deixou que fosse novamente aberto, a dor da mãe dela, e de alguns homens chorosos relativamente parecidos com ela, suponho irmãos, aqueles a quem tinha sido possível comparecer.
*Conto baseado em factos reais.