FELIZ NATAL SQN
Adamastor desceu do carro. O estacionamento do shopping lotado. O senhor de meia idade guardou as chaves no bolso da calça. Os passos até a porta giratória. -"Não posso esquecer de comprar o livro do Amauri." O amigo escritor tinha lançado um livro recentemente. -"Aldeia Mordaz. Esse é o título. É cada título estranho que esses escritores inventam." Uma passada pra ver os filmes em cartaz no cinema. Um chopp na praça de alimentação talvez. Ele estacou, pálido. Ajeitou os óculos e abriu a boca. -"Mas que m. é essa?" A árvore de natal chegava ao teto do shopping, imensa. A casa do papai Noel com renas de três metros de altura. Uma decoração glamourosa. As luzes piscando ao som de músicas natalinas. As crianças agitadas e felizes. As pessoas tirando fotos com os celulares. -"Ainda estamos em dezoito de outubro. Ridículo isso." Um carro zero quilômetros seria sorteado entre os clientes do shopping. -"Não quer preencher um cupom, senhor? Dar um carro de presente para a esposa, talvez." Ele fez cara de poucos amigos para a vendedora gentil e sorridente. -"Não. Odeio o natal. Tem que comprar metade do shopping pra ganhar um cupom." Ele pegou o livro e saiu. Deixou pra tomar o chopp em outro lugar. Arrancou com o carro no estacionamento. Chegou em casa carrancudo. -"Antonieta. Já tem decoração de natal no shopping. Absurdo que ainda acreditem nisso." A mulher veio da cozinha, enxugando as mãos no avental. -"Normal, meu velho. Natal é nascimento de Jesus, só isso. O resto é o resto." Ele abriu a geladeira e pegou uma cerveja. -"Normal o escambau. Natal é só consumo, consumismo e tapeação. Uma comilança desnecessária de comida da Europa que nada tem a ver com nosso clima quente e tropical. Castanha, panetone, carne gordurosa e pesada, prato cheio pra indigestão. Amigo secreto de firma, a gente dá um relógio de ouro e ganha uma caneca do Palmeiras. Idiotices. Sem falar da hipocrisia danada, de gente que se diz parente, filha da mãe e mal amada que no ano inteiro não se lembra da gente e vêm dando abraços. Dão desfalque na despensa, isso sim. Vão para o raio que os partam." A mulher concordou. -"Nisso você tem razão. Há sete anos mudamos e estamos felizes assim." Ele a abraçou. -"Estamos felizes assim. Sabe, o papai Noel é invenção da coca cola pra vender produtos. Só besta não vê isso. Um cara gordo e barbudo, vestido de veludo vermelho debaixo de um sol de rachar, é pra rir. Uma multidão de desocupados vendo a carreata de caminhões da Coca cola, cheio de luzes. Que babaquice. Jesus não nasceu em dezembro, a ciência explica. Pegaram uma festa pagã, em dezembro, das colheitas, durante o império romano e adaptaram essa festa. Onde está escrito que Jesus nasceu em 25 de dezembro? Nasceu o natal, simples assim. Paganismo adaptado. " A mulher concluiu. -"Essas luzinhas também são pura enganação. Pode pegar fogo na casa, é um risco de incêndio danado. Vêm malandro de todo canto pra assaltar, nessa época, em nossa cidade. O número de gente pedindo nos sinais e ônibus é absurdo. Tudo culpa do natal." Adamastor pegou o jornal. Os anúncios de promoções de natal nas páginas do periódico. Ele amassou o jornal e ligou a tevê. A foto da filha no porta retrato sobre o aparador. Ele engoliu seco. Adriana tinha vinte e três anos. Há seis anos, ela voltava da faculdade quando um rapaz a parou no semáforo. Vestido de papai Noel, o rapaz a assaltou. A moça reagiu pois ainda pagava a moto nova. Acelerou mas levou um tiro nas costas que a deixou numa cadeira de rodas. A experiência da filha única foi um baque para o casal. O natal ficou marcado como época da maior tragédia da vida deles, que não viam motivos pra comemorar. Adriana se recuperou bem, com ajuda de fisioterapia e sessões com sua psicóloga. Guerreira, ainda que não pudesse mais andar, conseguiu um emprego e queria voltar a terminar a faculdade. Um namoro com um colega de trabalho e os pais surpresos com seu desejo de contrair matrimônio com o rapaz. -"Agora a gente vai perder nossa filha de vez." Queixou Adamastor. Adriana e Renato se casaram e quiseram adorar uma criança. Adamastor e a esposa não aprovaram a idéia. -"Essas crianças trazem o DNA dos pais verdadeiros. Vai dar trabalho pra cuidar." Miguel tinha dois anos e estava há oito meses no orfanato. Adamastor e a esposa foram conhecer o neto. -"Miguel nasceu em 25 de dezembro, pai. Devia se chamar Natalino." Adamastor não riu. Miguel abarcou Adamastor e se encantou por ele. Enchia o avô avulso de perguntas. -"Incrível como nossa filha está diferente, feliz." Disse Antonieta ao marido. -"Adriana me contou do sofrimento dessa criança até agora. A gente pensa que sofre e Deus não olha para nós, nos abandona mas não é verdade. Miguelzinho é apegado a ela, parecendo filho de sangue mesmo. É um milagre. Deus uniu esse garoto a nossa filha. Ele está lá, sempre, nos olhando e zelando como pai amoroso. Deus sempre está lá, nas horas mais difíceis." A mulher deu meia volta e foi pra área de serviço. Adamastor ficou remoendo aquelas palavras. A filha chegou com o marido e Miguel. O garoto correu para o colo do avô. -"Minha mãe comprou uma árvore de natal. É pequena mas é muito bonita." O garoto olhou em volta. -"Não tem nada de natal aqui, vô? Não tem pisca pisca?" Adamastor foi direto. -"Não comemoramos o natal, não gosto." Miguel sorriu. -"Então não vou ganhar presente do vô nem da vó mas para mim vocês já são o melhor presente da minha vida. " Adriana e Renato abraçaram Miguel. -"E você é nosso presente de Deus, filho. Melhor presente de nossas vidas." Antonieta enxugou os olhos marejados no avental. Adamastor deu um sorriso amarelo. Uma semana para o natal. Miguel teve febre. -"Pois é. Teve febre e acho que foi por não ter ido ao shopping ver o papai Noel. Minha cadeira está no conserto e não posso sair. O Renato está fazendo horas extras no trabalho." Adamastor ouviu a conversa de celular, da esposa com a filha. Adamastor vestiu uma camiseta. -"Vou jogar bocha com a galera da terceira idade. Antonieta ligou para o esposo e ele não atendeu. Quatro horas fora de casa não era normal. O homem apareceu com caixas e sacolas nas mãos. -"Feliz natal, meu amor." A mulher se benzeu. -"Credo em cruz, é você mesmo, Adamastor? Há seis anos não fala feliz natal. Odeia tudo de natal." O homem estava diferente. -"A gente muda, oras. Me ajuda a montar o presépio e a árvore. Tem um pisca pisca colorido pra decorar a sacada. Guirlanda e papai Noel de plástico mas tá valendo. Vamos ter perú na ceia, depois de seis anos. Pode colocar uva passas em tudo, como todo mundo faz. Viva o natal, viva o menino Jesus." Antonieta ligou para a filha. -"Sim. Pra vocês jantarem aqui em casa. Nada de especial, oras." Miguel arregalou os olhos ao ver a casa dos avós decorada e linda. Adriana e Renato estavam surpresos. -"Uau. Eu adorei essa decoração. Onde está o vô Damastor?" A porta do quarto se abriu. -"Seu avô. Ele está no telhado cuidando das minhas renas e do trenó. Miguel? É você o pequeno Miguel?" O garoto correu para os braços do velhinho de vermelho. -"Papai Noel? Que bom te ver." O garoto alisou a barba branca do papai Noel. -"O vô não curte o natal. Eu entendo ele." Renato tirou foto do filho no colo do papai Noel. -"Eu vim trazer seu presente, Miguel. Você tem se comportado bem." O garoto sorriu ao ver a bicicleta e uma bola de futebol. Papai Noel se despediu. -"O senhor trouxe um presente para o vô?" -"Hohoho... feliz natal. Puxa, não trouxe nada pra ele pois o velho Adamastor me falou que o melhor presente da vida dele ele já tinha ganho. Um presente especial de natal chamado Miguel." O garoto sorriu ao ouvir aquilo e abraçou o bom velhinho. Papai Noel entrou no quarto e fechou a porta. Minutos depois, Miguel e Renato entraram no quarto. -"Viu, filho. O papai Noel saiu pela janela e pegou o trenó no telhado. Já está longe agora." O garoto olhou pela janela. -"Tchau, papai Noel. Obrigado." A família estava na cozinha quando Adamastor apareceu. Miguel o abraçou e mostrou seus presentes. Adamastor estava feliz. -"Que bom que vai gostar do natal, vô. Gostei do presépio e das luzinhas na sacada." Antonieta se despediu da filha, após o jantar. -"A febre passou. Miguel está bem e feliz. Papai me surpreendeu. Teremos um natal como antes, eu sinto." Antonieta e Adamastor ficaram sozinhos no portão. -" Maluco, Adamastor. Que coisa boa você fez!" Eles entraram em casa. -"Preciso de um banho pois suei bicas naquela roupa de veludo, dentro do guarda roupas pra não me verem. Esse garoto me fez chorar e quase sai do personagem." O casal se abraçou. -"Estou com saudades de comer rabanadas, Antonieta. Feliz natal, sqn." FIM