A Dura Vida de um Gato II

21.11.21

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Adotei aquela casa. Era onde me considerava o dono do pedaço, até certo ponto. Ainda faltava conquistar alguns locais, principalmente dentro dela. Não me deixavam ajeitar e afofar as cobertas ou almofadas do sofá, ou me deitar na cama. Ainda não. Mas, como somos ladinos e sedutores, com jeitinho e manha felina, gradativamente me inseria nos cômodos furtivamente. Enxotavam-me: corria, parava na varanda e olhava com desdém para a bendita da vassoura de piaçava balouçante em suas mãos - meu trauma, as vassouras. Mas não me batiam, só varriam o chão jogando-me os detritos, assuntando-me. Como dizem: cachorro, ou gato, mordido por cobra, tem medo de linguiça.

Outro detalhe, os donos da casa ficavam longos períodos fora, deixando-me sozinho sem qualquer consideração, aos cuidados da vizinha, que somente pela manhã, dava-me comida e saía o dia todo também. Um desplante para mim. Aproveitava estas ocasiões para passear pelas casas da vizinhança, ver como estava o acesso a elas, se ainda podia roubar alguma comida. Enfim, voltar e ser aquele gato de rua que fui até então, pois a nossa essência sempre impera, igual ao escorpião. Mas ali, naquele local, me sentia bem, e mesmo com a frequente ausência deles, era um ótimo lar. Sim, o meu lar. Ponto final!

Ao voltarem, os via e caminhava imponente e insolente sem dar-lhes qualquer atenção, sequer um olhar. Orgulhoso, passava longe ao longo do jardim , vingativo!

- Querida, o Pebas está injuriado pela nossa ausência. Olha ele lá, caminha sem olhar para nós! – fala o homem para a sua mulher, rindo da minha atitude. Esse nome, Pebas, convenhamos, não me agrada .

E como queriam que eu me manifestasse? Como os cachorros, que bobamente latem e fazem festa, sem qualquer dignidade. Quando vejo essa cena canina, fico feliz em ser gato, pois temos personalidade e postura, superior. Os cães, não. Sempre de língua de fora e ofegantes, pulam e choram atabalhoados ao mesmo tempo nestas situações. São uns tontos, os cachorros.

Estava mesmo injuriado e não iriam me seduzir, não. Manteria a minha dignidade, até certo ponto.

-Vem Pebita, vem cá rapaz, vem. Não esta com saudades? –fala o homem fazendo estalidos com os dedos para que fosse até ele.

Mantive-me sentado indiferente, altivo e com pose, mostrando todo o meu desprezo momentâneo. Não posso me entregar de imediato a eles, tenho que manter a minha realeza. E Pebita , é demais!

Algum tempo depois de me manter impassível, com os donos na casa, subi calma e mansamente os degraus da escada da varanda e parei em frente à porta de acesso, aberta. Sentei-me, olhando-os sem fechar meus olhos, como faço ao ver as pessoas de quem gosto. Desta vez, os mantive bem abertos e acessos.

-Olha quem apareceu querido? –fala a mulher vendo-me ali plantado de olhos arregalados.

O homem diz:

-Acho que ele esta com tanta fome, que vai ter que engolir o seu orgulho, não é Pebita? - balançando o pote com os grânulos de ração, vindo em minha direção.

Mantive-me estático enquanto passava por mim e depositava a comida no meu prato. E agora, como eu reagiria? Estava com fome, pois comera só pela manhã e já passada da hora do almoço, meio da tarde. Tinha fome sim! Fiquei com um dilema: comer ou não? Trocaria o meu orgulho por um prato de comida, ou não? O que fazer?

Ele se aproveitou do meu estado de questão e começou a me acariciar. Mantive-me impávido, mas gradativamente fui cedendo, pois nós gatos somos tremendamente levianos, e qualquer afago e atenção, nos faz voltar a ser o que somos: gatos.

-Ah seu malandrinho, gosta de um carinho né? Vai comer vai, eu sei que você esta com fome, te conheço – passando a sua mão quente e gorda em meu corpo. Não resisti. Enrosquei-me nas suas pernas e cedi totalmente a luxuria sensual de me sentir um gato, miando carinhosamente para ele.

Ele parou de me acarinhar e entrou na casa. Fui até o meu prato de comida e devorei faminto toda a ração. Nós não prestamos mesmo, nos vendemos por um afago e um prato de comida. Fazer o que, é da nossa essência.

Passado esse episodio, voltou à normalidade a nossa relação, com um detalhe melhor: conquistei alguns novos locais na casa, como deitar-me no sofá sobre uma coberta, fazendo companhia ao homem quando sentado ao computador, ou, deixando-me aninhar junto as suas pernas ao assistir à televisão. Acredito que a minha atitude de insatisfação naquele dia, provocou-lhes esse amolecimento. Seduzimos mesmo, é da nossa essência.

Assim, segue a dura vida de um gato, até certo ponto.

Fernando Ceravolo
Enviado por Fernando Ceravolo em 21/11/2021
Reeditado em 21/11/2021
Código do texto: T7390659
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