OS SINAIS
Pararam um momento em Trafalgar Square.Electricos e autocarros deslizavam rápidos para cima e para baixo, a multidão passava apressada em todas as direcções e o sol brilhava.
Somerset Maugham, Of Human Bondage
- O mais que lhe pode acontecer é ficar constipado, ter uma reacção alérgica ou espirrar até à exaustão.
- Atchim! Desculpe.Será que já comecei a ter isso tudo?Acabou de me injectar!
O mundo estava cheio de ameaças.Até as vacinas contra a gripe se tornavam em algo assustador.
Mas ele tentava adoptar uma pose descontraída, desportiva e sorridente, meia parva.
Era, no entanto, impossível fingir que não se passava nada e que bastava querer e ficava-se longe da turba insensata à Thomas Hardy.
A Terra, o planeta defrontava-se com alterações climáticas aberrantes, vulcões e marmotos inusitados e uma atmosfera de terror inaudito.As nações desententendidas e em tensão tentavam evitar o pior .Chuvas e ondas de calor.Uma espécie de caos generalizado, à vista de toda a gente.
E ele saía para as caminhadas de manhã, e envergava um blusão por cima do fato de treino e um cachecol de muitas voltas como uma cebola com várias camadas e reparava nos bandos de pombos em voo rasante pela alameda vasta entre a fonte luminosa erigida no Estado Novo e o velho Instituto de Engenharia como num êxodo desesperado.
- Bom Dia.Um café,se faz favor.
- Quer com um cheirinho?
- Bem me apetecia emborcar um cálice inteiro mas não devo.Posso cair para o lado e não quero.Pelo menos, hoje.
- Ficava com os olhinhos a brilhar logo pela manhã, senhor Manuel.
-Ah nisso, acredito piamente.
Ninguém se entendia na política.Os partidos todos ao rubro por causa da suposta aprovação/ reprovação do Orçamento Geral do Estado.Em perspectiva, o alegadamente trágico.Crise, mais uma - como se ainda fosse possível aguentar, já não tinham conta tantas e variadas crises.Duodécimos, prazos legais de espera obrigatória e adiamentos dramáticos de decisões vitais para a economia e para o país.A polémica das ciclovias no centro da cidade.
- As ambulâncias que passem por cima, façam os doentes e o sinistrados voar.Até era giro de se ver. – berrava alguém histericamente numa discussão de rua, sem pés nem cabeça.
Mas no plano pessoal os sinais também não eram mais animadores:
- Já não caibo nas saias nem nas calças e não sei o que hei-de fazer – queixava-se a senhora e cônjuge respeitável e de facto apesar de ingerir tudo insonso, cozidos e grelhados, massagens enérgicas a preço de ouro nas pernas e no abdómen, as cavitações e as palmadas desenfreadas nas nádegas assopradas, engordava a olhos vistos umas gramas todas as semanas.
Os amigos do face publicavam no face selfies num frenesim de exaltação dos egos.Vestidos, meios despidos,na praia ou em casa, em todo o lado.”Olhem, reparem em mim, reconheçam-me…”(sinto-me muito só, ajudem-me).
E havia a queima das fitas e as praxes fora de tempo, imigrantes e multidões desocupadas, retiros de auto-ajuda e mendicidade e miséria pelas ruas, à discrição.
Os sinais pareciam desoladores, profanos e insidiosos.Uma enorme e gigantesca torre de babel sem solução.As pessoas telefonavam-se a contar histórias do outro mundo.
- Já há presenças alienígenas a viver entre nós há muito tempo.Será que estão a ouvir-nos?A ligação pode ser interrompida de um momento para o outro!Ouviste um estalido?
- A minha chefe sugeriu que se eu quisessesse ser promovida, devia conhecê-la biblicamente. Achas isto normal?
- Encontrámo-nos pela terceira vez e enfim era suposto as coisas acontecerem mas não. Beijou-me com uma ardência nunca vista, fez-me dois chupões roxos no pescoço mas quando naturalmente lhe sugeri que fossemos até a um sítio mais privado, esbofeteou-me, gritou-me que não era dessas, que eu nem sequer pensasse em assediá-la e quase que emarinhou pela parede de excitação cheia de suores frios.Mudei-lhe o nome no telemóvel e passei a chamá-la “Monja Clarissa”.Sempre me aliviou ligeiramente mas agora quando me telefona tenho sempre um pequeno susto e imagino que alguém me está a telefonar de um convento.
Por isso, ele respirou e resolveu não pensar em mais nada.Reuniu os sacos de lixo separado numa mão e um especial e extra sem nada lá dentro e por usar, cumprindo obedientemente os requisitos ecológicos, atravessou o corredor com destreza e algum cuidado,bateu com a porta do apartamento com parcimónia e desceu na plataforma elevatória com a calma ancestral dos desiludidos.Algumas décadas já vividas com amargos desapontamentos. Abriu a porta e saiu para a rua.
Respirou o ar fresco e outonal.Caminhou até à estação do lixo.Distribuiu cada saco pelo contentor adequado e finalmente com um gesto decidido tirou do bolso o saco extra e vazio.Abriu-o com os dedos, enfunou-o e abriu o tampão dos indiferenciados como um ilusionista ou presdigitador.E convenceu-se a si próprio que aquele era o saco das decepções, de todas as decepções, do dia das desilusões, as aceites e sem reacção enquanto a velha farmacêutica reformada e proprietária de meia dúzia de lojas no quarteirão o observava atentamente, sentada muito hirta na esplandada da pastelaria improvisada.
Ele deitou o saco vazio no lixo e deixou cair o tampão com força.Esfregou as mãos e sacudiu-as e empreendeu o caminho de regresso a casa com uma visível atitude de alivio e parca satisfação.
A farmacêutica engasgou-se com o café, tossiu e comentou em voz audível.
- Ai o homem não está bom da cabeça!Não está, não.São sinais!São sinais!Ou serei eu que estarei a ficar maluca do juízo?