E A VIDA CONTINUOU...

(ALBERTO VASCONCELOS)

Moisés e Sara quando completaram cinco anos de casados, deram uma festa na Sinagoga, cujo ponto alto foi o anúncio de que, a partir daquela data, não seriam mais utilizados os anticoncepcionais e que eles pretendiam, como a tradição mandava, constituir uma prole numerosa, sadia e instruída pelos ensinamentos do Deus dos ancestrais Abraão, Isaque e Jacó. Foram grandes a alegria e as manifestações de júbilo de todos os amigos e da vasta parentela do casal presentes ao evento que só terminou quando os primeiros raios do sol avisaram que era hora de cada um assumir seus afazeres. Sara cuidava dos pais, idosos e inválidos. Moisés assumiu todas as responsabilidades da loja do sogro depois que ele, acometido por AVC, não pôde mais estar à frente dos negócios. No bairro judeu, aonde moravam, a notícia se espalhou rapidamente e muitos consideravam que Sara já estivesse grávida. Mas não. Os dias foram se acumulando em semanas, meses, anos e a gravidez tão desejada nunca era confirmada. Os exames de fertilidade que foram feitos atestavam que ambos possuíam perfeitas condições físicas para a procriação. Então só poderia ser provação que Deus estava impingindo ao casal por ter-se negado a procriar logo depois do matrimônio. Nesse meio tempo, o casal foi se aconselhar com o senhor Ariel, rabino ortodoxo com mais de sessenta anos de atividade, recém-chegado da Europa. Ficou então acertado que perante a reunião dos anciãos da comunidade, o casal receberia uma bênção especial. Hinos, cânticos, diversas leituras de textos sagrados em aramaico e o casal foi dispensado com as esperanças renovadas. Dois ou três meses depois, eis que surge a boa nova. Gravidez confirmada. Qual seria o sexo? Era a pergunta que, de boca em boca, não saía dos assuntos mais corriqueiros. E foi por esse motivo que o casal resolveu fazer a ultrassonografia, afinal já estavam no sétimo mês da gestação, portanto não haveria quaisquer sombras de dúvidas. O médico encarregado do exame, falante e bem-humorado, de repente emudeceu. Limpou, mais de uma vez o transdutor e a pele do ventre de Sara. – Vou encaminhar o resultado diretamente ao seu médico. Se possível entre em contato com ele ainda hoje. Falou com um fio de voz. Com um breve aperto de mão, o ginecologista mandou que o casal sentasse e retirou o envelope de dentro da gaveta da escrivaninha e com voz grave, quase paternal, esclareceu: vocês terão que tomar uma decisão muito séria. Foram detectados dois problemas irreversíveis com o feto. Ele tem microcefalia e os braços não se desenvolveram. Mesmo com a ausência dos braços ele poderia ter uma vida quase normal, mas a microcefalia vai torna-lo incapaz de viver por conta própria. Eu aconselho interromper a gravidez o mais breve possível.

(ARISTEU FATAL)

O casal ficou sem chão. Sara teve um desmaio. O médico precisou socorrê-la, colocando-a na maca, e lhe dando a medicação necessária. Instantes depois, já acordada, com um choro compulsivo, a cabeça no ombro de Moisés, perguntava se aquilo era certeza. Não podia acreditar. Como foi isso acontecer justamente com eles, que tanto queriam ter um filho? Não era possível que Deus tenha tão sido tão injusto conosco, falavam em altos brados. Todas dificuldades por que passaram! Já em casa, a vida dos dois virou um inferno. Eu não vou fazer o aborto. Jamais, dizia Sara. Moisés também sofria, e após muitos conselhos dos parentes, de amigos, começaram a fazer um tratamento psicológico. Eles tinham uma prima psicóloga, muito competente e famosa, a Dra. Stella. Em pouco tempo as coisas se acalmaram, então começaram a tratar do rumo que deveriam tomar. Aconselhados pela prima, decidiram fazer uma viagem para Israel, onde teriam melhores condições de encaminhar o problema. Um irmão de Moisés, medico, que há muitos anos se radicou em Tel Aviv, se prontificou a recebê-los em sua residência. Lá estariam, também, livres das visitas que aconteciam todos os dias, que por mais bem-vindas, sempre acabavam em choradeiras, e outras cenas muito desagradáveis. O Dr. Szimon foi um achado para os dois. A legislação judaica é muito mais liberal que a do Brasil, com relação ao aborto. No caso de feto com doenças ou deformidades impossíveis de a criança ter uma vida normal, a interrupção da gravidez é permitida, bem como a preservação da vida da mulher, e em caso de estupro. Lá existe um conselho especialmente criado para examinar e autorizar caso por caso de aborto, chamado Comitê de Interrupção da Gravidez e a mulher deve ter idade entre 17 a 40 anos! Apesar de que muitos não admitirem, por quebra dos desígnios de Deus. Há também, dentre a população, dos que entendem que o feto faz parte do corpo da mulher e enquanto não nascer, nada impede a interrupção. O Halachá, o livro das leis judaica, relaciona os casos passíveis do aborto. Segundo Rashi, um pensador judaico, o feto enquanto não nascer, ele pertence ao corpo da mãe, assim ela pode dispor dele, de acordo com sua vontade. Sara e Moisés, desde então, tiveram uma alteração muito grande, no enfrentamento do problema, e assim agir com serenidade para resolvê-lo. Dr. Szimon aconselhou-os a ficarem em Tel Aviv se caso fosse de Sara fazer o aborto. Eles concordaram e, até estavam pretendendo morar lá em definitivo. O problema somente era o pai de Sara, doente e Moisés ter a loja para administrar.(30 linhas)

(CLÉA MAGNANI)

Todo o sonho do casal havia se transformado numa expectativa sem esperança. Tinham aguardado esse filhinho com tantos projetos, e agora, mesmo sabendo que teriam sempre a espada da dependência permanente, ou da morte precoce sobre suas cabeças, tanto Moisés quanto Sara não aceitavam exterminar aquela vidinha que pulsava no ventre dela. Refletiram muito. Consultaram todos os especialistas a respeito. Estudaram as leis judaicas, e finalmente decidiram que o melhor a fazer seria voltarem ao Brasil onde tinham tarefas a cumprir. Moisés reassumiu a loja, para a tranquilidade de seu sogro que necessitava de vários tratamentos devido ao AVC. E foi num desses atendimentos que Sara, ao ser indagada pelo médico de seu pai, para quando era o nascimento, que ela, muito emocionada, contou o seu drama. Depois de conversar muito com ela, o doutor pediu o seu contato, para que, se surgisse alguma novidade no meio científico sobre microcefalia, eles se comunicassem. Sara ficou muito grata, e assim iniciaram alguns contatos esporádicos, até que o nascimento de Allan aconteceu. Nasceu de parto normal, facilitado pelo diâmetro minúsculo do crânio, e a falta dos dois bracinhos. Sara ao ouvir o vagido de seu filhinho, nem prestou atenção nos defeitos, quis que o colocassem sobre seu ventre, acariciando seu pequenino corpo decepado pela falta dos braços, mas que parecia sentir o carinho daquela que o gerou. Pouco depois, procurou seu seio e deglutiu algumas gotas do colostro fortalecedor. Da testinha para baixo, seu rostinho era quase normal. Apenas a cabeça seguia quase que pouco acima dos olhinhos, num rasante que murchava até a nuca. O pescocinho e os ombros normais sentiam a falta dos membros superiores, mas as perninhas normais agitavam os pezinhos que teriam de aprender a fazer o que as mãos fariam, se as tivesse. Moisés que assistiu o parto, beijava agradecido o rosto de Sara, e suas lágrimas eram um misto de tristeza e de ternura por assistirem a VIDA brotar, mesmo que imperfeita, do amor que os unia. Os dias foram passando e Allan já estava com 4 meses, quando seu coraçãozinho começou apresentar alguns problemas, segundo os médicos, decorrentes da microcefalia. Mas todo o resto do seu organismo era perfeito e funcionava bem.

Porém, naquela manhã, ao ir até o berço, Sara gritou por Moisés. Allan estava desfalecido e com os lábios roxos contrastando com a palidez de seu rostinho. Correram ao hospital imediatamente. Allan estava tendo uma parada cardiorrespiratória e não conseguiu ser reanimado.. Então o médico perguntou se eles permitiriam uma doação de seu fígado e seus rins, para duas crianças gêmeas de um ano, que aguardavam doação de órgãos, filhas de uma mãe solteira, que morreu no parto. Ao perceberem que a vida de Allan continuaria a vibrar nessas duas crianças, Moisés e Sara consentiram. Acompanharam todo o procedimento, que foi um sucesso, e depois da alta dos gêmeos, os adotaram. Assim Allan continuou a viver, em seus novos dois irmãozinhos.

Cléa Magnani, ALBERTO VASCONCELOS e ARISTEU FATAL
Enviado por Cléa Magnani em 20/11/2021
Código do texto: T7389986
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