Quando a morte é a solução

Andando a passos lentos, trôpegos, dona Vanda abriu a porta de sua casa; seu rosto velho, cansado, enrugado, refletia a passagem do tempo. 88 anos! Com um sorriso brando, olhos lacrimejantes, saudou a visitante, vizinha recente, que fora lhe visitar, convidou-a a entrar. E, antes mesmo que a visita se sentasse, confessou-lhe um segredo: estava com fome e com medo. Sua filha saíra deixando a sozinha desde cedo, tardava a voltar. Contou-lhe sobre sua vida, suas angústias e tristezas, da solidão companheira, das intermináveis noites a meditar...Desejava ardentemente perder a memória não ter mais consciência, não sentir as horas passar.

Assim, seria mais rápido o fim daquela agonia em que se transformou o seu viver. Mostrou as mãos enrugadas, antes trabalhadeiras, mãos de lavadeira, bordadeira, de doméstica, operária, dona de casa; mãos que os filhos afagaram, mãos que calosas ficaram de tanto labutar.

Não permitia que a ilustre visitante fosse embora, não sabia ao certo o seu nome, mas dela ouvira falar. Agarrava-lhe a mão e pedia insistentemente para ficar, dizendo:

- A velhice, minha vizinha, é um grande transtorno, ainda mais quando se é pobre e nada de grande valor se tem para ofertar ou herdar. A minha família: filhos, genros, noras, sobrinhos e netos, quase não aparecem, vivem sempre a reclamar; o trabalho e os estudos tomam-lhes quase todo o tempo, os afazeres são tantos! O clube, cinema, o lazer em fim... Quanto a mim, não tenho lugar nas suas vidas, passo o tempo a recordar, é o fim!

A minha filha Zildinha, essa é viúva, mora comigo, mas sai quase todo o tempo, vive a namorar. Às vezes se esquece que já não consigo andar, sinto fome, sede e frio. Assim, fico horas a esperar por ela que sempre tarda a chegar.Algumas vezes me diz:

- Mãe, a morte vem vindo, está chegando de mansinho, é melhor se preparar, jejuar e perdoar, fazer penitência e oração, ficar na solidão para poder se purificar, pois eu acho que lá em cima não é como aqui. É melhor estar pronta para obter o perdão de Deus!

A visitante ficou estarrecida, abalada com tanta informação, não sabia se acreditava no que ouvia, mas tinha a plena certeza de que aquela velha senhora sofria de uma terrível solidão!

O tempo passava, a filha não aparecia. A anciã, faminta, reclamava de dores no estômago. Fome dói, minha filha! Dizia, Seus olhos azuis, ainda bonitos, lacrimejavam, a visitante dizia consigo mesma:

- Deus, quanta covardia! Deixar uma mãe abandonada, sozinha, assombrada, com fome, desesperada, num colapso de agonia. Seria a morte uma doce companhia? Chegou a olhar para o céu e pensou pedir pressa para a partida da velhinha, mas logo se arrependeu, pensou no pecado e lembrou dos ensinamentos da Igreja, não se deve desejar a morte, nem para si, nem para outrem. Só quem deve decidir sobre a vida é o Senhor Deus, a ele cabe o poder de decidir.

Voltou a observar o semblante da senhora e, num gesto de ternura, afagou-lhe o ralo cabelo, deitou a branca cabeça em seu ombro e lhe fez um carinho, um chamego. D. Vanda aninhou-se, fechou os olhos e gemeu de prazer; sentiu um calor pelo corpo, adormeceu!

A tarde ia chegando, a anciã ressonava, até a fome parecia ter passado, sentiu tanto conforto que da visitante não desgrudava. Estava frio, pelas frestas da janela, o vento soprava forte; os pés da senhora congelavam, a circulação, por certo, piorava, devido, naturalmente, à demorada posição no sofá da sala, sentada, a esperar o retorno da filha que não chegava.

A visitante afagou um pouco mais aquele ser, aplainou momentaneamente a sua dor, deu-lhe energia, calor...

Sentiu dentro do peito um aperto, ao vê-la assim indefesa, sem ódio ou rancor, só o clamor por um pouco de carinho, atenção e amor.

O corpo fraco, frágil e magro não opunha resistência, mas o estômago roncava, não tinha paciência. E a filha que não aparecia para prestar assistência? A visitante teve o ímpeto de ir a cozinha buscar algo para D. Vanda se alimentar, pensou que o sono poderia por ora bastar.

As horas passavam...Passavam...Silêncio, solidão...Mas, de repente, um estremecimento súbito sacudiu o corpo gélido da frágil velhinha. Nem uma palavra! Apenas um longo e profundo suspiro. A morte turvou-lhe o brilho dos olhos que se apagaram fixos nos olhos de alguém que pouco conhecia, mas que lhe dera, nos últimos momentos, o amor que tanto desejara, tanto queria!

Morreu desabafando sua dor, angústia e agonia.

A filha apareceu à tardezinha, quando para mais nada servia. Não derramou uma só lágrima. No semblante, o alívio! Afinal tivera fim o pesado fardo da mãe que lhe tomava tempo, lhe prendia.

A visitante se foi, levando no peito e na alma a certeza de que D. Vanda vivera um martírio, o mesmo por que passam muitos velhos no Brasil; abandonados em suas casas, albergues e asilos; reles trapos humanos, sem mais serventia, à espera da morte, bendito bálsamo para essa agonia.

A visitante chorava copiosamente, desejava não ter sido fiel testemunha de tamanha covardia!

Maria de Lurdes Mattos Dantas Barbosa