PASSANDO VONTADE

Depois de um longo e cansativo dia de trabalho, eu, que estava faminto e exausto, sentado perto da calçada, vi ao longe um garotinho com um sorvete de palito nas mãos.

Estava uma tarde quente. Abafada.

"Poxa... tá um calor..."

Fixei meu olhar na cena. A alegria, gelada e condensada, sustentada por um palito de madeira. O pequeno bálsamo para o aflito que sofre com o calor de São Paulo.

Fiquei com vontade. Ou como dizem: "atiçou meus vermes".

"Deve ser barato. Quanto tenho de grana?"

Analisei meus bolsos:

Nada.

Só o dinheiro da passagem para voltar.

O menino sorvia seu picolé com uma alegria que tentei recordar quando foi que tive sentimento semelhante. Tão infantil e puro. Ao mesmo tempo tão caro pra mim.

Caro não no sentido de querido, mas caro mesmo; uma vez que o sorvete na loja próxima da escola custava R$ 2,50 palito e R$ 4,00 de massa.

Aquilo me remoeu. Apenas R$ 2,50 e eu não tinha. Ou era isso ou voltar a pé para casa.

Senti-me uma criança vendo outra a se deliciar em sua iguaria enquanto eu passava vontade.

"Que gosto deveria ter? Pela cor deve ser de chocolate... meu preferido. Gosto tanto de sorvete de chocolate..."

Nessas horas o diabo atenta, provocando nossa ingratidão. Eu, adulto, sofrendo por um picolé. Gula e inveja. Dois pecados capitais num só corpo.

"Droga!" Continuei olhando.

Aquele menino, que pela aparência não devia ter mais de oito anos, era a meta de vida que eu não tinha. Provavelmente ele não sabe quanto custa uma passagem de ônibus. Quiçá quanto custou o picolé que saciava sua ânsia e magoava a minha.

"Caramba! Eu trabalho. Dou um duro danado e agora não tenho dinheiro pra comprar um sorvete igual aquele? Eta, vida besta, meu Deus!"

Ainda tinha que ir para o ponto de ônibus.

"Nem pro sorvete dele cair no chão... moleque besta..."

Aturdido, dei um tapa em meu próprio rosto e removi tal pensamento:

"O que é isso, agora? Eu sou adulto. Não posso ficar com frescurinhas infantis. Se não tem hoje, deixa pra lá. A vida é dura mesmo. Paciência... E você..." repreendi a mim mesmo, "vire homem!"

Levantei, respirei fundo, dei uma última olhada para o garoto que já virava a esquina com seu pai segurando em sua mão.

O ônibus se aproximava. Dei sinal.

"Quer saber... dá próxima eu economizo e tomo um picolé. Vida que segue."

O busão abriu a porta. Antes de subir, terminei de tomar meu milkshake misto de Ninho trufado com Nutella, joguei copo e canudo fora e fui pra casa.

Leandro Severo da Silva
Enviado por Leandro Severo da Silva em 16/11/2021
Reeditado em 16/11/2021
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