TARDE DEMAIS 30 - O VOO E A PEÇA DO FILHO

Conto de Gustavo do Carmo

Publicado originalmente em 23 de maio de 2016

“Atenção, senhores passageiros do voo RH2227 com destino ao Rio de Janeiro: embarque adiado para os próximos 50 minutos”. Anunciou a locutora de voz nasal e pausada do aeroporto de Congonhas, em São Paulo.

E nauseado de ansiedade e preocupação ficou Agildo, que precisava embarcar o mais rápido possível para o Rio de Janeiro, onde mora, na Barra da Tijuca, com a esposa e o filho único. Adolfo, de nove anos, iria estrear como ator na peça da escola.

Engenheiro mecânico, o pai do menino foi obrigado a se reunir com a matriz de sua empresa em São Paulo. Prometeu voltar para a apresentação teatral do filho, às sete da noite. Assim garantiu para a esposa Jaqueline e o próprio Adolfinho, durante o café da manhã, antes de sair de casa para o aeroporto.

Agildo só não contava com a chuva torrencial que caiu sobre São Paulo no meio da tarde. O temporal começou quando ele deixava a reunião, por volta das três horas. Pegou um táxi e também um enorme engarrafamento que durou uma hora e meia. Por sorte, o taxista oferecia livros e revistas como passatempo.

Agildo não conseguiu se distrair. Estava preocupado com o tempo. Não queria decepcionar o filho que o considerava um herói. No Rio de Janeiro, o futuro ator foi para a escola, por volta das quatro da tarde, para começar a se preparar para a peça, passar o texto pela última vez e se maquiar.

Às quatro e meia, Agildo chegou ao aeroporto. A fila do check-in da ponte aérea estava enorme. Levou meia hora para ser atendido. Pelo menos o atendimento foi rápido e só durou cinco minutos. Foi a um restaurante comer alguma coisa porque estava morrendo de fome. Seu voo estava marcado para as seis horas.

Se voasse mais cedo, esperaria chegar ao Rio às sete da noite, pegar um táxi e ainda pegar metade da peça do filho, em Botafogo. Se tivesse saído mais cedo da reunião daria para chegar no horário. Mas ficou conversando com o presidente da empresa.

Só que agora ele estava ciente de que o voo ia atrasar e que pegaria mais engarrafamento no Rio. A locutora do aeroporto confirmou o fim dos planos de Agildo. “Atenção, senhores passageiros do voo RH2227 com destino ao Rio de Janeiro: embarque adiado para os próximos 50 minutos”. Anunciou a locutora de voz nasal do aeroporto de Congonhas, em São Paulo.

Nauseado com o estresse, Agildo precisou pegar o celular para avisar que as esperanças de ver o filho se apresentar na escola morreram.

— Amor, o Adolfinho está por perto?

— Não. Ele está no camarim.

— É, amor! Não vai dar. Não vou poder ver o nosso filho se apresentando.

— Eu sabia. Você sempre priorizando o seu trabalho, né?

— Priorizo sim e você sabe o porquê! Respondeu rispidamente com a esposa, de quem está pensando se separar por causa das cobranças.

Mas acaba desistindo por causa de Adolfinho. Reconhece que não tem dado atenção suficiente ao seu filho único, que nunca lhe cobrou nada.

Por ele, largaria tudo para dar mais tempo à família e também à sua saúde. Porém, precisava levar dinheiro para casa, já que a esposa não trabalha e os pais são idosos e necessitam de empregada, acompanhantes e muitos remédios.

A conversa entre o casal continuou e Agildo ainda disse:

– Me esperem aí na escola que eu busco vocês para fazer um lanche para comemorar. E não diga nada ao Adolfo que eu não vou poder assistir à peça.

— Tudo bem. Você que sabe. Finalizou Jaque, contrariada.

A exemplo do voo de Agildo, a peça, uma remontagem de O Bem Amado, de Dias Gomes, foi adiada em uma hora porque caiu uma goteira no auditório da escola. Choveu muito também no Rio. Ruas se alagaram e o trânsito ficou parado. Jonas, o diretor e professor de artes, foi um dos que ficaram presos no engarrafamento, mas chegou em cima do novo horário.

Adolfinho interpretaria o matador de aluguel Zeca Diabo, contratado pelo prefeito Odorico Paraguaçu para matar algumas pessoas na cidade de Sucupira e poder inaugurar o seu cemitério. O espetáculo começou e Agildo finalmente embarcou no avião, ainda em São Paulo.

O tempo melhorou e cerca de cinquenta minutos depois, Agildo já estava no Rio. Enfrentou mais uma fila: a do táxi. Esperou meia hora. Já estava quase chegando à escola quando o seu celular tocou. Era Jaque.

— Agildo, vem direto pra casa. Não pudemos esperar.

Agildo atendeu à ordem da esposa e foi para a Barra da Tijuca. Ao abrir a porta do apartamento, mal entrou na sala e Adolfinho correu ao seu abraço, ainda com o rosto manchado de lágrimas.

Ele apenas disse:

— Obrigado, papai!

Agildo pensou: “Com nove anos, o meu filho já sabe ser sarcástico?”. Culpado, ele se desculpou:

— Poxa, meu filho. Perdoa o seu pai por não ter ido à sua estreia teatral.

— Eu perdoo, sim. Não estava sendo irônico. Eu estou agradecendo mesmo. Fui um fracasso. Fiquei mudo o tempo todo. O tio Jonas, diretor da peça, a interrompeu várias vezes para me chamar atenção. Mesmo assim, não consegui falar nada. Ele perdeu a paciência e me expulsou aos gritos. Fui vaiado e substituído.

— Foi por minha culpa, meu filho! Me perdoa! Disse Agildo, já chorando de tanto remorso.

— A culpa foi toda minha, pai. Eu estava era pensando na minha colega por quem estou apaixonado, que fez a esposa do Dirceu Borboleta. Eu estou te agradecendo é por você não ter chegado a tempo de ver o fim da minha carreira. Chegou tarde demais, mas na hora certa. Ficaria ainda mais arrasado se o meu herói, que é você, visse o meu vexame.

Agildo largou a carreira de engenheiro. Virou agente do filho, que voltou a ser ator depois de fazer um curso de interpretação.

Gustavo do Carmo
Enviado por Gustavo do Carmo em 16/11/2021
Código do texto: T7386505
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