A ÚLTIMA GOTA
“A morte cotidiana não é a morte exuberante do fogo que perfura o céu com suas flechas;
a morte cotidiana é a morte da água.” (GASTON BACHELARD)
O mundo se acabava em chuva. Alana Nogueira contemplava o temporal do último andar do prédio onde trabalhava. O expediente acabara há tempo suficiente para a maioria do pessoal já ter ido embora. Só ela permanecia na sala por algum motivo que nem ela sabia o qual. Observava os desenhos que as gotas faziam nas vidraças das janelas do prédio, iluminadas pelas luzes coloridas da cidade. Às vezes a noite lhe trazia aquele sentimento. Sentia a linha do tempo suspensa por um momento no qual passado e futuro deixavam de existir e só havia um vazio profundo, onde algo assustador rastejava nas profundezas.
Tantos corpos guiados pela linha invisível da existência, tantas luzes acesas por mecanismos que ela jamais entenderia exatamente como funcionavam. Aliás, o que ela sabia de verdade? Como tudo aquilo se movimentava (a vida, a cidade, o tempo, o vento) tão depressa e indefinidamente?
Luzes e sombras, dançando num ritmo frenético. Buzinas, freios, fumaça, gritos, sussurros, beijos, assaltos, mentiras, gestos, repetitivos como o ruído de uma máquina eficiente.
“Obrigado, volte sempre”
“Crédito ou débito?”
“Tem trocado?”
“Tudo bem? — Tudo bem.”
E aquele sentimento de... necessidade? Não. Chamar aquilo de necessidade era chamar tempestade de brisa. Era uma ânsia mortal por gritar acima da superfície. Alertar o mundo como ele estava se afogando naquela crescente onda de vazio. Mas todas as tentativas de grito eram ignoradas. Talvez estivessem todos abaixo da superfície, também se afogando, ou já afogados — como ouviriam? A onda crescia, assim como a cidade e a quantidade de edifícios, shoppings e mendigos. Uma hora iria derrubar tudo aquilo.
Ela sabia que tinha algo de positivo naquela história. Tinha que ter, afinal. Só não sabia onda estava. De certo não era nos sorrisos vagos, nas risadas que, se você prestasse bem atenção, poderia ouvir o som do choro por baixo daquela fina camada de alegria. Também não estava nos anúncios e propagandas sempre com imagens e mensagens positivas sobre como você seria deus se pudesse pagar por isto.
Achava que estava em algum lugar no limiar do sonho e do despertar. Nas frestas que só eram vistas com os cantos dos olhos. Coisas há muito esquecidas. Línguas desaprendidas. Canções que não eram mais cantadas, mas ainda tinham seus ecos soando por algum lugar.
Sonhava com algo que pudesse servir de barco para navegar através de todo aquele mar de vazio para, quem sabe, encontrar uma ilha perdida. De lá poderia mostrar aos outros que valia a pena continuar nadando, pois, ainda havia terra firme em algum lugar por aí.
Aquele sentimento a abatia sempre que caía do barco e esquecia como navegar. Perdida numa rotina sem sentido. Sonhando nos momentos como aquele que alguém pudesse a estender a mão e a dar uma carona até que ela estivesse preparada para voltar ao seu próprio barco.
Sonhava com uma mudança repentina em sua vida. Alguém apareceria e a tiraria daquele abismo.
A noite na cidade tinha dessas coisas.
Sentimentos que surgiam no meio de todo aquele movimento autômato.
De qualquer forma ela iria para casa, beber uma cerveja ou duas e assistir um seriado medíocre qualquer, mas que aparentemente todo mundo estava vendo e adorando. Navegar em coisas inúteis na internet até dormir lá para depois da meia-noite, deprimida por saber que teria que acordar antes das 6:00. E no outro dia, quando ela pegasse o trem lotado para o trabalho, e começassem a chegar os boletos do mês, aquilo tudo já não faria tanto sentido.
Alana suspirou e já ia embora quando julgou ter lido algo na janela. Duas letras se formaram nas gotas que banhavam o vidro:
— Oi
Caraalho! — Pensou — Eu tô precisando urgentemente de férias.
Um ponto de interrogação surgiu na frente da palavra.
— Oi?
— O-o-oi. — Gaguejou ela, sentindo-se bastante estúpida por isso.
Rapidamente, outras palavras se moldaram na superfície do vidro:
— Quer saber?
Alana ficou parada, esfregando as mãos nos olhos, para então olhar novamente as palavras escritas.
Isso só pode ser um sonho! — Disse para si mesma e mais três palavras foram moldadas pelas gotas na janela.
— Quer saber? Ou não quer?
— Que-quero! — Mas que bruxaria é essa?!
As palavras se transformaram em outra, de maior tamanho:
— Sobe.
— O quê?
A palavra "sobe" se transformou em uma seta apontando para cima, como se um jato de ar preciso moldasse a água com delicada habilidade.
Estava ali o que ela tanto esperava? As respostas para o seu vazio interno finalmente viriam?
Subiu as escadas que levavam à cobertura do prédio, com o coração prestes a fugir do peito, desejando que, como de costume, a porta estivesse trancada e isso pusesse um fim naquela loucura toda. Mas, para sua surpresa (ou nem tanto), a porta estava aberta. Foi só encostar e ela se abriu para a noite tempestuosa na cobertura do edifício.
Divisou através da chuva e do vento forte um tipo de aeronave, pousada no heliporto, mas parecia mais uma miniatura de um dirigível que um helicóptero. Do lado dela estava alguém vestindo uma grande capa de chuva escura, o capuz cobrindo a cabeça.
Não era isso que você queria, Laninha? Pensou. Não era você que vivia sonhando com momentos como esse? Não era você que implorava por uma mudança na rotina infernal?
Após um momento que parecia nunca acabar, Alana deu dois passos sob a chuva, encharcando-se instantaneamente da cabeça aos pés. Estava consciente do alto risco que corria ao fazê-lo, mas o que tinha a perder? Uma vida? Podia mesmo chamar aquilo de vida?
— É agora que você me mata? — Gritou para a pessoa ao lado da aeronave — Ou vai me sequestrar viva? — Falou com sádica indiferença, mas então a porta pela qual passara se fechou com um baque e ela caiu de joelhos no chão. Chorou copiosamente sem saber exatamente o motivo.
Enquanto chorava parecia que todas as suas lágrimas se uniam à chuva. Como se uma versão maior de si mesma estava lá em cima derramando em chuva a dor de todos os seus prantos ocultos. E mesmo aquela quantidade de água que caía do céu não era suficiente para colocar para fora tudo o que sentia. Aquela coisa submersa que a espreitava pelo canto do olho nos momentos onde a rotina parecia parar e dar espaço para o que havia além.
Viu todos os seus dias vividos envoltos numa penumbra escura. Nada do que fizera parecia relevante o suficiente no momento. Tantos dias desperdiçados com... com o que mesmo? O que havia? Nada. Nada. Nada. Vazio infinito.
— Você é a morte? — Disse entre um soluço e outro. — Porque acho que vou morrer. Deve ser assim que se morre.
— Alguns, em outros lugares, já me chamaram disso — Falou uma voz de homem — ou de Anjo da Morte, para ser mais exato... mas, foooda-se! — ele ergueu as mãos — que diferença faz? No fim, sou só o velho Baker. — A voz a soava familiar. Parecia um tanto desinteressado, o que de alguma maneira era tranquilizador.
A tempestade intensificou-se e as rajadas pareciam capazes de rasgar e jogar para longe as roupas de escritório de Alana. Era assim que ela se sentia de qualquer forma: nua sob a chuva e o vento. Nada para se esconder atrás e fingir que estava tudo bem. Nenhuma desculpa para dar. Era como se a tempestade a levasse para o céu em meio a raios e trovões e a fizesse contemplar o todo lá de cima. O todo de sua vida que insistia tanto em se parecer com um imenso nada.
Quando finalmente parou de chorar, percebeu que a chuva também já não caía. O vento soprava furiosamente quase arrancando a capa escura do corpo do homem que ainda o esperava em frente à aeronave — e vez ou outra dava um trago num cigarro.
— Não se preocupe, eu não tenho foice, se é disso que tem medo. — Soprou uma fumaça que escondeu seu rosto por alguns segundos — alguns parecem que sim. Não vai pelo menos ficar de pé? — Disse por fim, puxando o capuz para trás da cabeça, revelando uma barba parcialmente grisalha em um rosto velho e jovial ao mesmo tempo, com o que Alana julgou ser um sorriso irônico. — Você sabe que não vou te fazer mal. Não mais do que já fez a si mesma. Estou aqui para lhe dar uma segunda chance.
— Então não vai me matar?
— De certa maneira sim... — Ele riu — Daqui para frente vai estar morta para o mundo. Mas, pensando bem, não vai mudar muita coisa, não é? — Ele jogou o cigarro no chão, pisou e sorriu.
Alana se ergueu e disse:
— Sim. — E quando o fez, o horizonte no leste explodiu em luz — como se o sol estivesse lá há séculos, só esperando por um “sim” dela.
Sua voz, pela primeira vez desde que subira até ali, soou firme.
— Então vamos? — Disse o homem, virando-se para abrir a porta da aeronave.
A expressão no rosto de Alana agora parecia bem mais leve que minutos antes.
— O que eu preciso fazer? — disse ela, dando um passo resoluto.
— Por hora, estar pronta para deixar o nada para trás. O resto você aprende no caminho e aos poucos vai conhecer o que há embaixo da superfície.
Aquilo era tudo o que ela precisava ouvir.
— O que estamos esperando? — Disse ela.
Sorria.
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