Ritinha comeu sarrabulho?
Aquelas pessoas tão iguaizinhas às pessoas de todos os dias. Aquele lugar tão comum, tão lugar como os de sempre. Aquelas músicas animadas demais como sempre demais. Os mesmos sapatos velhos tirando do chão aquela poeira tão conhecida. Tudo como sempre. Tudo tão chato. Era uma festa, mas podia ser qualquer coisa, porque qualquer coisa era previsível bastante naquele lugar. Até mesmo uma festa. Tudo repetitivo. Inclusive o sarrabulho. Sobretudo, o sarrabulho. Urgh! Sarrabulho! O de sempre. O de todo ano. O marrom escuro da comida era nada convidativo. Não parecia comida. Parecia muito mais... Urgh.
Juarez Aquino jamais experimentou o sarrabulho da quermesse de todo o ano. Mas isso não o impedia de se divertir, de ajudar a levantar poeira rodopiando alguma das tão comuns meninas da vila. Todas muito comuns, com exceção de Ritinha. De tão diferente tornou-se indiferente e foi embora. Fazia o quê? Dois anos e meio, três anos? Juarez Aquino só sabia que era tempo demais.
E era em Ritinha que Juarez Aquino pensava enquanto bebericava, lá num canto escuro, uma cerveja.
Mas o escuro do canto não foi suficiente para indicar a unzinhos inconvenientes, como o Maurício, que Juarez Aquino queria ficar sozinho.
Segurando um prato de sarrabulho, balançando as pernas bêbadas e gritando para cobrir o som de um chamamé, Maurício quis animar o amigo:
- O que cê tá fazendo aqui neste escuro? Cara, tá cheio de guria aqui! Não vai dançar?
- Tô a fim não.
- Nem vai comer?
- Comi um arroz aí, um pouco de carne.
- E sarrabulho?
- Eca! Sabe que não gosto!
- “Eca”? Como assim? Pode falar assim de comida não.
Juarez Aquino nada disse e Maurício continuou ali na altura de sua inconveniência, movimentando o corpo sem intimidade com o chamamé e comendo sarrabulho. Entre uma colherada e outra, tentava, todo torto no portunhol, acompanhar a música:
- “Deixa-me cantar no teu coracion... la-la-la-la... e despois voar... la-la-la...”
Do nada, parou de comer e de cantar e voltou a conversar aos berros:
- Sabe quem tá vindo aí?
- Não tô interessado não.
- Duvido se não.
Maurício fez aquela cara, aquela cara.
- Tá, conta então. Quem tá vindo pra cá?
- A Ritinha.
- Quê? Sério?
- É sério.
- Mas ela tá aqui? Sério?
- Sim. Veio visitar a mãe dela. E as duas vem pra cá mais tarde. Eu ouvi a dona Carminha e a dona Abadia conversando isso aí. E eu acho, só acho, mas acho assim, com quase certeza, que ela só tá vindo pra cá pra ver você.
Aquele sonho beliscando segundas e terceiras intenções de Juarez Aquino o transformou por completo. De imediato, começou a dançar, tomou mais umas latinhas e resolveu até mesmo colocar o paladar à prova, arriscando-se no sarrabulho. E gostou. Gostou muito. Sabe-se lá por que: se era pela imagem de Ritinha que sorria em suas ideias, pelo álcool, pela alegria ou, simplesmente, pelo sabor forte do guisado ou, ainda, por tudo isso junto.
Comeu. Comeu. Comeu. Comeu. Demais. E comeu um pouco mais.
O estômago, todo bagunçado de cerveja e sarrabulho, não se aguentou e gritou socorro.
O suor e a dor de barriga exigiram alguma ideia seca do álcool. E Juarez Aquino, então, pensou: “Preciso ir embora. Não me aguento mais de vontade de... Ai, ai. Se ficar aqui vou borrar as calças. E Ritinha? E Ritinha? Oh, vida injusta! Vou sair de fininho, sem falar com ninguém”.
E foi lá fora que aconteceu desses raros encontros paradoxais da vida: a felicidade de rever a pessoa amada e o corpo infeliz e indiferente com urgência de evacuação.
Ritinha, desacompanhada da mãe, sorriu como nos sonhos de Juarez Aquino. Ele apenas retornou um riso amarelo, entrou no carro e saiu em disparada. Tudo muito, muito, muito frio, na avaliação de Ritinha.
Ela não arredou o pé da festa. Ficou carrancuda, mas ficou. Engoliu um pedaço de carne e o orgulho e resolveu investigar o porquê da frieza de Juarez Aquino.
- Sei não. É estranho. Ele tava bem animado pra ver você! – respondeu Maurício.
Outros, no entanto, duvidaram dessa animação toda e aumentaram as dúvidas de Ritinha.
Juarez Aquino, em sua casa, aliviou-se... e muito. Tomou um banho e um analgésico. Dormiu alguns minutos. Acordou, olhou as horas e sorriu ao notar que não era tão tarde. Decidiu voltar e, quem sabe, encontrar Ritinha na festa.
Ao chegar, viu Ritinha, sozinha, do lado de fora. Juarez Aquino sorriu como sorri em seus sonhos. Ritinha lhe devolveu um riso amarelo. Entrou no carro e saiu em disparada.
Juarez Aquino esticou o braço, abriu e fechou a mão como se quisesse segurar o carro de Ritinha. Ficou parado uns segundos, tentando arrumar as ideias. “Já sei!” – gritou em pensamento. “Só pode ser isso” – o seu eu apaixonado lhe deu certeza, daquelas certezas que começam como fina luz de fim de túnel e se tornam farol intenso.
Entrou no galpão e começou, endoidecidamente, a perguntar a todos, um por vez:
- Você viu se a Ritinha comeu sarrabulho? E você, viu? E você, viu se a Ritinha comeu sarrabulho? E quanto a senhora, viu se a Ritinha...?
Comer ou não comer o sarrabulho eram pétalas do bem-me-quer e mal-me-quer.
Ninguém soube responder.
Juarez Aquino, que nunca mais viu Ritinha, odiou para sempre o sarrabulho.