Conto das terças-feiras – A festa que ainda não acabou
Gilberto Carvalho Pereira, Fortaleza, CE, 2 de novembro de 2021.
O ambiente da roça não era suficiente para Frederico, que desde cedo sonhava ser médico, cardiologista. Seu pai, por falta de assistência, morrera devido a problemas no coração. A família sempre morara em um sítio, onde seu bisavô, avô e pai tiravam o sustento da numerosa parentela: filhos, netos, primos, tios e, ainda, o avô por parte de mãe. Para não perderem espaço no terreno que cultivavam, plantavam feijão, milho, arroz, tomate, pimentão, batata-doce, jerimum, cheiro-verde, mamão, abacate e outras frutas. Era uma área diversificada e com o trabalho de todos a rentabilidade era espetacular, assim diziam eles. O principal era para compor o sustento da família, o restante vendido para comprar outras necessidades, principalmente remédios, quando não conseguia obtê-los da terra.
Frederico era chamado de preguiçoso, só ele não ia para a roça, vivia estudando. O pai nunca o admoestava por esse comportamento, sabia que o filho seria recompensado. O primeiro passo foi passar no vestibular e ir cursar medicina, aos 18 anos, na capital, sem mesmo ter feito curso preparatório para tal. Obteve o primeiro lugar, para a alegria de toda a família. Foi uma festa, rasparam-lhe a cabeça e tiraram muitas fotos. Na festa dos calouros, 20 ao todo, mais fotos: em companhia dos pais, irmãos, colegas, professores já no primeiro dia de aula. De jaleco com os colegas, dele só com o estetoscópio pendurado no pescoço, em atendimento aos pacientes de um hospital, durante as aulas práticas. Tudo exigia uma lembrança, uma foto para depois rever sua trajetória profissional.
Veio a formatura, uma foto especial, tamanho 24x30cm, que não foi emoldurada, e sim, guardada em local especial, uma caixa de metal, sempre escondida em seu guarda-roupa. Vinte colegas posaram para essa foto, era o ano de 1962. Nos anos seguintes, exatamente no dia da formatura, todos se reuniam para comemorar a data. Festas cheias de alegria, muitas fotos e conversas sobre a atividade de cada um, como estavam, onde trabalhavam, casados, filhos, e isso ocorreu até o décimo aniversário, quando a falta de um dos colegas foi notada, havia falecido. Por alguns minutos o assunto fez calar os presentes, mas logo a alegria tomou conta do ambiente. A necessidade de recordações, como costumeiramente acontecia, teve início com o pipocar dos flashes da câmera fotográfica. Uma foto com todos juntos, 19 agora.
Nos anos seguintes, entre o 11º ano de formatura e o 20º, não compareceram dois colegas, mas já era uma situação esperada, pensava Frederico que exclamava:
— Estamos ficando velhos, agora somos 17.
— Esse acontecimento deverá ser lembrado e festejado até restar apenas um – Disse alguém lá no fundo do salão.
Foram feitas as costumeiras poses para as fotos, depois dos jantares voltavam para casa felizes. Frederico, como sempre fazia, tirava a foto da caixa metálica, riscava um xis sobre os rostos dos colegas falecidos, ficava olhando para a foto por alguns minutos, algumas lágrimas rolavam pelo rosto, repondo-a no mesmo lugar onde havia guardado desde a primeira comemoração. E assim acontecera durante todos os anos seguintes, até a comemoração do 66º aniversário da formatura, quando restavam apenas dois colegas vivos, Doutor Frederico Alberto e Doutor Adalberto Andrade, como eles sempre gostavam de se cumprimentar.
Frederico nunca mostrara a foto que tinha consigo, toda marcada com xis em cada colega já falecido, em respeito aos colegas que já não mais privavam daqueles que persistiam continuar vivos e comemorando aquela data tão importante para eles. Pretendia mostrar para o colega Adalberto, mas receava que fosse uma afronta, indicando em qual pessoa seria colocado o próximo xis. Quando algum dos colegas falecia, ficava entristecido e às vezes até chorava. mas acreditava ser sua missão, ao reviver a cada ano, o dia mais feliz de sua vida. Embaraçava-se ao pensar desta forma, mas era assim que ele julgava. Não por egoísmo, só lembrança do que era e aonde chegara. Os dois amigos já algum tempo não se encontravam, a saúde um pouco abalada não permitia esses encontros, mesmo assim, na data mais importante para eles, chegavam a se falar por mais de uma hora, por telefone. Naquele dia, pegou o telefone, tentou falar com o amigo e colega Dr. Adalberto Andrade, alguém do outro lado, com voz embargada, respondeu:
— Dr, Adalberto Andrade faleceu hoje, às quatro horas da manhã, quem fala?
Frederico Alberto, não disse nada, simplesmente desligou o telefone e se calou para sempre. Foi encontrado seis horas depois, já sem vida, morte natural. Coincidentemente os dois haviam nascidos no mesmo dia, no mesmo mês e no mesmo ano. Morreram ao completarem 91 anos de idade.