A Dura Vida de um Gato

29.10.21

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Cheguei um dia naquela casa, curioso. Caminhei com meus passos mansos e delicados, sem qualquer barulho. Então vi uma pessoa. Encarou-me tranquilo, e percebi que não iria me molestar. Segui sem cerimônia e insolente como somos perscrutando o terreno gramado.

A pessoa, um homem, olhou-me com carinho dizendo-me palavras amáveis. Retribui-lhe o olhar, fechando um pouco os meus olhos ali parado. Senti que aquele lugar seria bom para me fixar. Mas, como os humanos são estranhos, decidi ir devagar, desconfiado.

Tinha sol e estava calor naquele dia. Então, fui para debaixo da varanda de madeira da casa. Acompanhava ele os meus movimentos, bebendo uma xícara de café, encostado na balaustrada da varanda. Deitei-me sobre a capa da moto do homem que ali secava. Fiquei por um bom tempo sobre aquele quentinho gostoso, sentindo todo o clima do lugar. Era aconchegante.

O homem entrou em casa. Fiquei um tempo ali curtindo o calor do dia e do lugar, escutando os falatórios da casa. Ouvia-o falar com uma mulher, deduzindo ser sobre mim. Senti que ele voltava para me ver, e ressabiado, me escondi atrás da moto. Ele comentou com a mulher, acreditando ser a sua esposa, que eu partira. Simpatizei-me com ele.

Ficava eu em outro local com vários gatos e com uma mulher que pouco carinho me dava, sou um gato extremamente carente, e pouca comida – éramos cinco gatos e gatas, passava fome, obrigando-me a assaltar as casas próximas, ou caçar passarinhos, tatu-bolas, borboletas – tem um gosto horrível, mas é proteína. Assim era a minha vida de gato, perambulando pelos jardins, telhados, muros da vizinhança.

Foras os carreirões e vassouradas que recebia das pessoas quando entrava em suas casas. Vassouras era o meu drama – a dona de onde ficava enxotava-me com ela, batendo nas minhas costas quando corria desembestado pelo seu mau humor. Fiquei traumatizado. Estava cansado e envelhecendo, pois meu pelo preto e lustroso, começava a esbranquiçar e cair. Mas dizem que gato tem sete vidas, será? Precisava achar um local definitivo para ser o meu lar.

Considero-me um gato bonito. Tenho o pelo todo preto do rabo até os ombros, com o peito e abdômen brancos, como as patas manchadas e o queixo também desta cor. Mas, o que mais chama a atenção das gatas são meus olhos dourados, como duas bolas de fogo, fortes e incisivos. Meu olhar é fulminante.

O problema é quando namoramos, com nossos uivos lancinantes de amor durante as madrugadas, fazendo com que sejamos nós, pobres amantes, recebidos com pedradas, jatos d’água, sandálias havaianas, e tudo o mais que estiver à mão dos humanos. Pois é, vida de gato não é fácil.

Dias se passaram indo regularmente naquela casa acolhedora, com meu andar de veludo. Às vezes, encontrava-me com ele ou ela, olhando-os com aquele nosso ar de enfado, deitando-me embaixo da varanda, senhor do local. Estava gostando desse nosso início de relacionamento, mas atento, sempre, pois os humanos são imprevisíveis.

Um dia, o vi com um saco de ração, colocando um pouco sobre o capacho de entrada da casa, para começar a poder se aproximar de mim; sabia da sua intenção. Fui até a comida e devorei com sofreguidão, estava esfomeado. Tentou passar a sua mão no meu corpo, mas traumatizado e com medo, virei-me e fiz aquele guincho mostrando meus dentes, agressivo. É brabo este menino, comentou com fala carinhosa. Era cedo ainda para me entregar, mas já me sentia acolhido naquele canto.

Sua mulher apareceu e observou:

-Ah deve ser da vizinha ali daqueles apartamentos mais abaixo na rua. Tem uma mulher que mora lá com vários gatos. Deve estar cheio de perebas, é gato de rua – acertou em cheio, era isso mesmo, a menos das perebas. A intuição feminina é forte. Gostei dela também.

Seguiu assim o nosso inicio de namoro, indo filar boia todos os dias pela manhã, depois à tarde e finalmente à noite. Ele ainda não conseguira me acariciar, não me sentia seguro, pois tive experiências ruins ao me entregar no inicio de um relacionamento, como com a mulher onde ficava, que mudava de humor igual ao vento. Continuava ressabiado. Mas não mostrava mais os dentes para eles ao comer. Era um grande progresso.

O ritual de me dar comida tornou-se nosso código de convívio, pois ele ao pegar o saco da ração, amassava-o fazendo aquele barulho de papel rasgado. Eu saía debaixo do deposito no gramado – me instalara ali, indo correndo para as refeições, comendo com avidez.

-Ele deve estar com vermes, come como um condenado e não engorda! - comentou a mulher.

Vermes eu? Será? Acho que ela não sabe como é difícil um gato sobrevier, pois não se caça passarinhos e borboletas todos os dias. E as casas que assaltava já sabiam da minha vida bandida, não dando mais oportunidades. E não tenho aquela descompostura dos cachorros, que tombam as latas de lixo para comerem os restos. Tenho classe! Os cachorros são de rua, sempre, tendo pedigree ou não.

Um dia em que ele apertava o saco para me alimentar, depois de tanto relutar em ter contato físico com eles, percebi que seria ali meu canto final, me entreguei. Fui miando em sua direção, enroscando-me nas suas canelas, amistoso como se fossemos velhos amigos. Sorriu e disse-me carinhoso:

-Está com fome né, seu interesseiro!

Miando mais alto e forte o acompanhei, caminhando por entre seus passos. Colocou a ração em um prato – agora tinha meus utensílios, era da casa. Olhei-lhe com ternura, fechando um pouco meus lindos olhos dourados e comecei a comer, feliz e confiante. Agachou-se e passou a sua mão quente em meu corpo, delicadamente. Aceitei e não reclamei como das outras vezes, deixando-o acariciar-me enquanto comia. Eles me adotaram! Ou melhor, EU os adotei, pois nós os gatos é que adotamos o local e o dono quando somos adultos. Foi o que aconteceu.

Sua mulher arrumou-me uma casinha – um antigo cesto de roupa de vime sem tampa, uma colcha velha para servir de cama, instalando-me na varanda. Agora era de fato da família. Conquistara-os.

Hoje, totalmente incorporado às rotinas domésticas da casa, mudei completamente o meu jeito de ser. Antes arisco, agora carinhoso ao extremo, sempre me esfregando nas suas pernas e braços. Se estiver o homem deitado no sofá vendo tevê, subo e me aninho junto a sua perna, por desgosto da mulher, que diz ter eu muitas perebas.

Fico indignado, pois a deixo pegar pelo meu cangote e passar não sei o que nas minhas orelhas, pelos, com gosto horrível e enjoativo, ouvindo-a dizer: é para o seu bem!

Aliás, meu nome é Pebas, mistura de pidão com perebas, dado por ela, claro.

Mais pareço um cachorro, sempre junto, os acompanho o dia todo pedindo carinho e recebendo sempre. Uma delícia. Sinto-me muito querido, mesmo com esse nome horroroso, Pebas. Pouco importa o nome, o que vale é o amor e a atenção que recebo deles. E dizem que gato não faz companhia, que é autossuficiente e independente. Não é o meu caso.

Não durmo dentro da casa. Mas à noite, todos os gatos são pardos não é mesmo, saio para dar minhas voltas, namorar e receber as pedradas e demais coisas que são lançadas sobre nós. Mas, fico tranquilo, pois agora tenho um verdadeiro lar para me acolher.

Viram como não é fácil a vida de um gato?

Fernando Ceravolo
Enviado por Fernando Ceravolo em 30/10/2021
Reeditado em 30/10/2021
Código do texto: T7374883
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