Um natal na igreja
-Boa noite, filho amado. Durma com Deus. Não se esqueça que amanhã é natal e o pastor Lúcio Freire virá nos pegar cedinho para o culto das nove.
Cristian ficava impressionado como o pastor, homem muito ocupado, tinha tempo e boa vontade para vir todos os domingos de manhã pegá-los, com a sua caminhonete do ano, neste fim de mundo onde moravam, um lugar com ruas esburacadas, com lixo por toda parte, com homens de semblantes mau encarados em cada esquina, alguns deles com armas na cintura, sempre gritando "tá limpo"; gritos estes que não faziam referência à higiene do local.
A mãe de Cristian era uma mulher muito bonita, jovem ainda, de pele clara, olhos castanho-escuros, com os cabelos pretos, longos, quase na altura da cintura. Seu pai era caminhoneiro, e muito raramente passava os finais de semana em casa; os domingos quase nunca. No momento, estava fazendo uma viagem para o interior do estado. Cristian sentia saudade de seu pai; tinha dúvida desse sentimento por parte de sua mãe e tinha quase certeza que o pastor Lúcio não tinha nenhuma saudade. Embora o menino tivesse apenas oito anos, sua mente era de uma racionalidade impressionante, muito por causa das conversas com seu tio Lázaro, que apesar de trabalhar como porteiro, tinha uma vida intelectual muito ativa, já que grande parte do tempo das doze horas que ficava na guarita do prédio, na zona sul, usava-as para leitura de livros de diversos assuntos, como filosofia, história, psicologia, entre outras áreas do conhecimento humano. Mas o menino não conseguia dormir, virava-se de um lado para outro, inquieto. Não saía da sua cabeça o discurso de quinta-feira passada do pastor Lúcio, onde este dissera que o motivo do mundo estar deste jeito era em razão do pecado original. Segundo o pastor, uma das formas das mulheres se redimirem, seria levarem uma vida de completa obediência aos seus maridos.
-Mulheres, sejam submissas aos seus maridos, como ao Senhor. De fato, o marido é a cabeça da sua esposa, assim como Cristo, salvador do corpo, é a cabeça da igreja.
Cristian imaginou que seu pai iria gostar do discurso do pastor caso estivesse ali, mas por um motivo que não saberia explicar, achou que talvez o pastor nem falasse isso caso seu pai ali se encontrasse, e sim que falasse um outro trecho qualquer da bíblia. Imaginou o pastor dizendo a estória de Isaque, o que lhe deu um calafrio instantâneo.
O dia já tinha raiado. Cristian não sabia com exatidão se tinha dormido ou ficado a noite toda em um estado de transe existencial.
-Bom dia, meu querido. Levante-se para escovar os dentes, o pastor Lúcio já está a caminho. Não esqueça de pegar a sua bíblia.
Fazia poucas semanas que sua mãe começara a levá-lo à igreja, sendo assim, as poucas vezes que tinha ido, não lera nada do livro sagrado, embora este ficasse aberto em suas mãos durante quase todo o culto. Por algum motivo, curiosidade ou apenas receio que o pastor lhe perguntasse se o estava lendo, resolveu que iria começar a lê-lo no caminho para o culto.
-E aí, garotão, tudo na santa paz do Senhor?!
-Tudo tranquilo, pastor Lúcio Freire.
-Maravilha. Vejo que as palavras de Deus já estão em suas mãos. Quero vê-lo vidrado nelas durante o culto.
O pastor deu um tapinha na cabeça de Cristian, e o menino imaginou que se a sua atenção para com a bíblia fosse a mesma que o pastor tinha com a sua mãe, em apenas um dia de leitura já conseguiria decorar o Pentateuco inteiro.
Entraram os três na caminhonete. A viagem duraria cerca de meia-hora, tempo suficiente para Cristian começar a leitura.
O pastor fitou Cristian pelo retrovisor interno da caminhonete e disse:
-Tenho uma ótima notícia pra te dar, garotão. Depois do culto haverá um churrasco em comemoração do nascimento do nosso senhor Jesus.
No mesmo instante, Cristian lembrou-se das palavras de seu tio Lázaro sobre a criação do Céu e da Terra, que se encontrava no Gênesis.
-Pastor Lúcio, meu tio Lázaro me disse que quando Deus fez o mundo, primeiro os animais e depois os seres humanos, Deus falou que os humanos poderiam se alimentar de todas as sementes, folhas e frutos que ele tinha criado e que em nenhum momento ele disse para comerem carne, sendo que, meu tio disse, o ser humano só foi autorizado a comer carne depois do dilúvio, quando Deus tinha se arrependido da sua criação e, mesmo assim, nunca carne vermelha.
A mãe de Cristian virou o pescoço e olhou em direção ao garoto, dizendo-lhe:
-Menino, não dê bola para o que o teu tio diz, ele está ficando maluco de tanto ler livros que não foram escritos por Deus.
-Mas mãe, está escrito aqui, olha, capítulo 1, versículos 29 e 30.
-Quieto menino! Agora fecha a bíblia porque já chegamos.
Tudo que o menino queria era estar tendo as suas conversas com o seu querido tio ou em companhia de seu amado pai, mas, infelizmente, teria que passar o dia todo ouvindo estórias que não faziam nenhum sentido para ele e, ainda por cima, ouvir os comentários do pastor Lúcio sobre a sua mãe, o que lhe causava um certo ciúme e as vezes um pouco de raiva daquele homem que tinha quase o mesmo nome do Diabo.