Conto das terças-feiras – A desforra

Gilberto Carvalho Pereira, Fortaleza, CE, 19 de outubro de 2021.

Geórgia e Mateus serviam na mesma unidade militar, ela tenente do quadro da saúde, dentista, ele capitão, da arma de artilharia. Dois jovens solteiros e de temperamentos semelhantes. Ela, espírito comunicativo, dócil, ele mais fechado, cumpridor de ordens, em sua condição de oficial oriundo da AMAN (Academia Militar das Agulhas Negras), procurava aplicar as regras do serviço militar rigorosamente. Quando se encontravam e seus olhares se cruzavam, por motivo desconhecido, sempre havia uma censura velada da parte dele. Alguns subordinados dela, seus auxiliares, já haviam notado esse comportamento da parte dele que parecia sentir prazer em vê-la assustada.

Certo dia a porta do consultório foi aberta e o Capitão entrou. Os que estavam no recinto ficaram paralisados, até mesmo a tenente, que jamais imaginara que ele teria coragem de invadir o local de seu ofício. Imediatamente solicitou que seus auxiliares, uma cabo e uma sargento saíssem. A sós, o Capitão iniciou o diálogo:

— Bom dia Tenente!

— Bom dia Capitão – respondeu ela perfilada e prestando continência.

— À vontade Tenente! Vim aqui por estar sentindo muita dor de dente.

— Vamos ver isso com cuidado Capitão, sente-se aqui!

Com cuidado e receoso, ou medo mesmo, o oficial sentou-se. A Tenente, um pouco mais confiante, pois o que iria realizar era de seu domínio profissional, pediu que o paciente abrisse a boca para que ela examinasse. Depois de demorada observação constatou duas cáries em diferentes dentes, uma doença infectocontagiosa provocada por bactérias contidas em nossas bocas que, ao se juntar aos restos de alimentos, produzem ácidos, causando essas corrosões progressivas. Ela se desenvolve principalmente ao comermos muito açúcar e quando não se higieniza apropriadamente a boca, foi exatamente o que ela transmitiu ao seu superior.

Com sua cavidade oral já liberada para falar, o paciente perguntou:

— Vai ser necessário extraí-los? Tenho pavor de dor, também não gosto de anestesia, argumentou o Capitão, com certo sentimento de insegurança causado pelo medo.

— Os dentes do senhor não serão sacrificados, mas vai ser necessária a aplicação de anestesia, porque a cárie é profunda, está quase atravessando a dentina. Se isso acontecer o senhor sentirá extremo desconforto, esse foi o diagnóstico.

Ao dizer isso, a dentista estava a sentir moderada alegria, iria se vingar daquele que estava à sua frente, que quando se encontravam causava-lhe pavor, expectativa de censura.

— Vamos lá Capitão, será só uma pequena dor, depois o senhor não sentirá mais nada, disse ela já segurando o carpule, uma seringa usada pelos dentistas para anestesiar o paciente, mostrando-o e encarando-o com um sorriso sarcástico.

A Tenente subjugava o Capitão com o seu instrumento do trabalho. Não que fosse sádica ou coisa parecida, estava apenas a aliviar sua tensão, procurando fazer o mesmo que ele fazia, quando a encontrava. Aos poucos esse teatrinho foi descendo o pano, ele mais relaxado e ela mais profissional.

Com a região ao redor dos dois dentes ficando dormente o Capitão parou de sentir dor, e a dentista iniciou o processo de remoção da cárie, com cuidado, processo que durou mais de 30 minutos. Ao término o paciente, por determinação de quem o assistia, fechou a boca fazendo movimentos para acomodar a sua articulação devido ao longo tempo sem movimento. Recebeu um jato d’água, bochechou e cuspiu na cuba ao lado da cadeira. Dado o procedimento por encerrado, o homem foi convidado a se levantar da cadeira odontológica. Pondo-se de pé, perguntou:

— Só isso, doutora?

Ela deu uma risadinha e falou:

— Só isso, a não ser que o senhor queira que eu substitua todos os seus belos dentes por próteses.

Os dois se entreolharam, ambos sorriram e ele agradeceu. O Capitão voltou mais duas ou três vezes, na última já não tinha nada para ser feito. Antes de sair convidou a companheira de farda para jantarem a qualquer dia, recebendo um sim com um gracioso movimento de cabeça.

Seis meses depois se casavam em uma Igreja do bairro em cerimônia inesquecível, que contou com o ritual do cruzamento de espadas, em que grande número de oficiais fizeram questão de comparecer e imprimir prestígio e maior beleza ao significativo e emocionante evento.

E estão felizes até hoje!

Gilberto Carvalho Pereira
Enviado por Gilberto Carvalho Pereira em 19/10/2021
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