O sonho do cego
Encostado no balcão da choperia, enquanto o garçom apressado anota meu pedido, percebo um senhor cego afiando as cordas do violão.
Que cena extraordinária! Um cego, no entanto, consegue tocar violão. Sempre sonhei tocar violão. O garçom cochicha: ele também toca piano. É de nascença? Pergunto, e o garçom dá de ombros, acha que sim, mas não tem certeza.
Dos cinco sentidos, o tato se torna mais sensível na falta da visão.
As imagens de Ray Charles, Stevie Wonder, Art Tatum e Jeff Healey surgem na minha mente: eles enxergaram na escuridão e transformaram a música numa espécie de luz.
Uma pergunta me assombra: os cegos sonham?
Um gole de chope e a minha resposta é retórica: certamente foi numa primavera que o cego percebeu o cheiro das flores. Desde então, nunca mais conseguiu sonhar sossegado.
O músico dedilha delicadamente as cordas do violão. Sorri, um riso de imagens, sombras que só ele enxerga. Os acordes me preenchem, a voz melodiosa, toada, despeja em mim a velha mania de arriscar poesia, um guardanapo, a caneta da tinta gasta: setembro é mês ligeiro, quando vemos, já passou. E o agosto desse ano terrível, foi como um sopro, nem poeira deixou. Nossa, ficou horrível, risco tudo antes que alguém leia. Não sou poeta, por que insistir?
A voz do cego possui a melodia certeira, aquela flecha atingindo o alvo, a sensibilidade apagada nas vistas extrapola nos dedos e agora sou eu quem sorri, a arte é um sonho perene e atravessa qualquer escuridão.
Tenho comigo alguns assuntos a tratar nessa crônica, coisas diversas, mistura de nonsense com imagens apanhadas depois de tomar zolpidem. É quando sonho com uma rua comprida, esparramada de flores, tantas cores e nada no fim.
Espere, há algo sim, uma árvore torta balançada pelo vento.
Mas é o sonho do cego o eixo principal dessa narrativa.
Embaixo da árvore torta, as raízes arranhadas por um soberbo gato cinza, repousa o sonho do cego.
Ele dedilha a segunda música e eu vejo a imagem do seu sonho de ontem, um soldadinho de chumbo, a última imagem da infância, a cabeça no colo da mãe, que orava. E o cego não sabe se chorou, embora o rosto queimasse.
De volta às estações: a primavera apaga o inverno, mas o frio permanece. “Você viu a tempestade de ontem?” alguém no bar comenta em voz alta e respondo em pensamento: vi e senti muito medo, o dia transformado em noite, o vento varrendo tudo em volta, o sentimento de impotência diante de algo tão soberbo. A natureza provoca em mim uma mistura de medo, respeito e enorme admiração.
“Fiz uma casinha branca lá no pé da serra pra nós dois morar”, canta o músico cego e eu sinto um arrepio no corpo. Nada vê, mas sente, sonha com sons e as imagens ele próprio inventa, o abstrato é real no sonho do cego.
Prossegue dedilhando as cordas do violão, e outro de seus sonhos me acomete, vejo seu rosto dos olhos apagados caminhando em busca do que não sabe, o suor tomando conta da farda parda. Ah, que bom seria se o céu fosse apenas leitoso.
O sopro frio no meu ouvido, um gole de chope, o vento fala do tempo, dos meses que passam ligeiro e uma dor de incompetência me abraça, porque comecei a escrever um romance, um texto de batalha épica do qual saio sempre perdendo.
O músico cego termina a canção, é aplaudido, acena para o público que não vê, mas sente.
Ele também toca piano. Bom seria se tudo fosse como as teclas do piano, preto, branco, um toque, uma canção que fale de árvores, de um amor perdido, de um pássaro do bico rachado e das asas machucadas, não voa, mas sabe cantar.
A música agora fala do primeiro amor, “foi como uma flor que desabrochou e logo morreu” e eu quase consigo sentir o cheiro da flor. Qual a cor da rosa nos olhos do cego?
Outro gole de chope, outra música, fala da saudade da infância e eu tenho comigo as minhas pontas de saudades....a primeira lembrança do mato não é o cheiro, é o carrapicho, aos montes, grudados nos sapatos, espalhados nas canelas, preenchendo o calção. O guizo da cascavel escondida nas moitas de guavira, a chuva que caía de repente e era quente no começo, esfriava depois e provocava risos bobos, como se a água fosse algo indecifrável e desconhecido. Minha alma florescia, era primavera de antes e as noites de setembro sempre foram mais ligeiras que outras.
De repente, gotas de água da chuva na janela da choperia. O meu rosto reflete no violão: você consegue sentir o cheiro da chuva batendo na poeira? Pergunto ao músico cego e ele nada responde. Respiro fundo e formo um brilho no rosto: esse cheiro tem nome, é petricor, a poeira tentando escapar da água. Ele respira, um relâmpago, o trovão, a escuridão atrás dos óculos escuros.
O cego sabe que o céu é azul, embora não saiba exatamente como é o céu.
Novamente a poesia ameaça sair de minhas mãos: presa a pressa rompeu o silêncio, restou o assovio, o longo e ameaçador assovio. Não consigo outra rima para assovio que não seja frio. E risco a poesia.
Fecho os olhos, me perco em meu mundo, nenhuma voz, nada, apenas o uivo do vento e o barulho dos passos apressados vindo em minha direção. A bateção de pregos me despertam, o martelo é amarelo, diz o cego e eu desconfio que ele não distingue as cores, embora o barulho pareça mesmo ser amarelado.
Minha mão treme e quase rasgo o resto do guardanapo, escrevo, porque vivo: o mar é um tolo, vem e vai e nunca sai do lugar. Apaixonado pela lua, tenta beijá-la, sem desconfiar da distância, sem perceber que a luz da lua não é verdadeira, é apenas o reflexo da paixão que ela sente pelo sol.
Gostei dessa, vou guardar no bolso da camisa e se a chuva não me apanhar, talvez eu chegue em casa com ela intacta e resolva mostra-la para alguém. Talvez.
Outro relâmpago faz brilhar o rosto do músico e eu arroto um gosto azedo de fel. No sonho do cego as cruzes do cemitério são azuis e na forma são gotas de lágrima, parecida aos ponteiros de um relógio erguidos no ar, contando lentamente os dias que passam e a escuridão permanece.
O frio e o calor não têm barulho e o sonho do cego é uma árvore torta que se foi.
Um último gole, o músico cego agradece as moedas e vou saindo ligeiro, sentindo um mormaço na alma, tinha tanto para lhe falar, mas nem sempre consigo transmitir na voz a mesma intensidade com a qual escrevo.
Que pena.
A chuva se vai, a poesia me acompanha, vem o passarinho, não é o beija-flor, que esse não beija mais ninguém, o matei no último dia do verão, por ciúmes da rosa.
Nem sei o nome do músico cego, só sei que ele sonha à noite. E ainda que a escuridão permaneça, há de sorrir diante do infalível calor vindo do brilho do sol assim que o sono termina.