O PRÊMIO

O PRÊMIO

- ALBERTO VASCONCELOS

No próximo mês o senhor Tavares completaria sessenta e cinco anos de idade, dos quais cinquenta e um, dedicados ao trabalho ininterrupto no Armazém Livramento, aquela grande loja de tecidos. Apesar de já estar gozando a merecida aposentadoria, permaneceu comparecendo ao trabalho de segunda a sábado, sempre incentivando os colegas a prestarem bons atendimentos aos inúmeros clientes. Por conta disso, os colegas de trabalho estavam preparando uma festa para que o bota-fora ficasse registrado para sempre na memória de todos. À socapa, nos corredores formados pelos muitos tecidos expostos, os outros balconistas enquanto não estavam atendendo aos clientes, trocavam ideias de como deveria ser a comemoração, cuja única concordância era o local, a churrascaria Boi de Prata.

Ainda estava bem vivo na memória do senhor Tavares o momento em que ele se entrara naquele espaço apertado entre a parede e o pé da escada do sobrado da Rua do Livramento, aonde não cabiam mais do que duas pessoas, abarrotado de tecidos de todos os tipos e para todos os gostos.

Postado na porta, impecavelmente vestido com o terno e com chapéu, também preto, o senhor Youssef El-Chedid, olhou-o dos pés à cabeça quando ele disse que queria um emprego, que podia ser qualquer coisa, que se ele não soubesse fazer, bastava ensinar uma vez que ele aprenderia logo, mas que ele precisava trabalhar para poder pagar o curso de vendedor que ele queria fazer, mas não tinha dinheiro para as mensalidades muito caras que a Associação Comercial estava cobrando. - Si a menina querrr abrender Youssef enzina sem cobra nada. Mas tabém num bode baga. Negócia muita bequena.

No mês seguinte, o senhor Youssef já pode se dedicar às viagens como representante de fábricas de tecidos enquanto o Senhor Tavares permanecia na lojinha atendendo à clientela, cada vez mais satisfeita. Numa determinada manhã apareceu a placa de aluga-se em uma das portas da loja do outro lado da rua.

Era uma oportunidade de ouro que se apresentava, aluguel barato, acerto fácil com a viúva que queria mudar-se a fim de aliviar a dor com a morte do marido que apesar de muito debilitado, tinha esperança de reabrir a loja quando a saúde voltasse, mas a saúde não voltou e o melhor que a viúva tinha a fazer era mesmo alugar a loja que ficava no térreo da casa aonde moravam.

O senhor Youssef, quando soube da novidade, roxo de ira, esbravejou, chamando-o de khara e de ibn il-aHba. Arrancou cabelos, atirou no chão e pisou no chapéu demonstrando como esmagaria o infeliz que queria leva-lo à ruina, da qual não se reergueria pelo resto da vida.

- ARISTEU FATAL

O Senhor Tavares é descendente de imigrantes portugueses, que embarcaram e chegaram ao Brasil no início do séc. XX. Seu pai, ainda solteiro, era ourives e veio atraído pelo metal precioso, com a intenção de montar uma joalheria. Estabeleceu-se em Riachuelo, interior de Sergipe. Ali era fácil negociar com os garimpeiros, que exploravam as minas existentes mais para o norte, e vinham vender as pepitas. Casou-se com uma sergipana bonita, formando uma vasta prole. Senhor Tavares, um dos filhos, como todos os outros, teve uma boa educação, e sempre demonstrou sua pendência para lidar com números, bem como facilidade no trato com as pessoas. O pai, preocupado com o futuro dele, levou-o para Aracaju, onde havia mais oportunidades para estudos, indo morar com um dos tios.

Ele quis estudar no período noturno, para poder, durante o dia, arrumar um emprego. Assim aconteceu. Ainda imberbe, foi pedir emprego “no lojinia” do Senhor Youssef El-Chedid.

Esperto, daí para frente começou a se enfronhar em tudo o que diz respeito ao comércio de tecidos. Inclusive, adquiriu algumas revistas de modas femininas, e com certa habilidade, desenhava modelos para debutantes, noivas, vestidos de festas. Bem recebida, a clientela do árabe deu um salto nas vendas, o movimento triplicou, e o então menino Tavares passou a ser o empregado de maior produção na loja. E, o tempo foi passando...!

Já adulto, muito responsável, passou a ser o gerente.

O Senhor Youssef vibrava com a criatividade do seu gerente, que vivia reclamando do pouco espaço da loja. O Senhor Tavares fazia planilhas, demonstrativos, e planejamentos, onde o patrão tomava conhecimento do que seria, se o espaço da loja fosse maior. Sorria, mas, como bom libanês, não queria gastar, tinha medo de ir para a bancarrota.

Um “mão de vaca” dizia o gerente, referindo-se a ele.

Enquanto viajava, inclusive uma das vezes para o Líbano, coisa que nunca acontecera depois da vinda ao Brasil, Tavares tomava as rédeas da loja, decidindo sobre compras, despesas gerais, tinha direito a todos atos inerentes ao negócio, através de procuração assinada por Youssef. Não teve qualquer dúvida em compor com a viúva dona do prédio em frente, assinando o contrato de locação, com preferência em caso de venda. O Sr. Youssef, podia fazer tudo, menos voltar atrás no negócio feito pelo seu gerente, sob pena de pagar uma pesada multa.

Todavia, após a mudança, o movimento da loja subiu de tal maneira, que o Sr. Youssef El-Chedid não teve outra saída senão agradecer e dar um significativo prêmio ao Senhor Tavares. Uma BMW último tipo.

Meses depois, a viúva veio a falecer, e seus herdeiros venderam o prédio até então alugado.

- CLÉA MAGNANI

Aquele prêmio mexeu com a cabeça de Tavares. Nunca, nem em seus sonhos mais desvairados, o homem simples, de vida modesta que sempre fora, poderia se imaginar dono de um carro daqueles. Também porque, conhecendo bem o patrão que tinha, jamais poderia supor que ele gastasse tanto dinheiro com um presente. Se eles fossem parentes, ainda assim seria de se estranhar. Mas dar uma BMW último tipo para um empregado? Não! Totalmente surreal... Ganhara um prêmio problema. Morando no bairro simples em que sempre vivera, não possuía garagem segura para o veículo que chamava a atenção de toda a vizinhança. O Seguro era desproporcional ao seu salário, por isso não foi feito, e Tavares continuava a vir trabalhar de ônibus para evitar riscos impagáveis. Na verdade, o presente se transformou num transtorno...

Depois do falecimento da dona do imóvel onde ficava a loja, os herdeiros ofereceram ao “El-Chedid” a compra do local, porém, num ataque de “fraqueza” o sr. Youssef abriu mão da compra, mesmo havendo o contrato com a preferência dele na negociação. Tavares iniciou uma verdadeira batalha com o velho patrão, para que ele fechasse o negócio. Argumentou que seria bom para ele... que o estabelecimento com sede própria teria mais segurança... que assim poderia deixar uma boa herança a seus herdeiros.... Mas nada convenceu o Sr. Youssef El-Chedid a aceitar dispor de nenhum centavo na compra do imóvel.

Os herdeiros da viúva, ansiavam por se desfazer da velha casa e irem para o Rio de Janeiro para viverem suas vidas. Tavares se preocupava com o teimoso patrão. O novo proprietário talvez exigisse a entrega do prédio para outros fins...Mas conhecia bem o velho “cabeça dura”...

O fim do a semana chegou e Tavares deveria se despedir definitivamente de todos naquele sábado, para aproveitar sua tão merecida aposentadoria...

- “Bom dia Davares.”... – Cumprimentou Sr.Youssef, como fazia ao chegar, todas as manhãs dirigindo-se ao escritório. A agitação entre os colegas estava mais intensa entre os poucos manequins que Tavares conseguiu fazer com que Youssef colocasse para exibirem os tecidos mais vistosos, mais caros.

Enfim o sino da Igreja no final da Rua do Livramento bateu o meio dia, e Tavares, pela última vez, baixou e trancou as portas da loja. Os colegas o rodearam acompanhados pelo velho patrão e entre abraços e vivas, quase carregado pelos amigos, o surpreso Tavares ficou sabendo do almoço que o homenagearia no fumegante e deliciosamente aromático Boi de Prata.

Aperitivos. Palavras elogiosas. Lembranças de momentos difíceis e engraçados, e muita alegria antecederam o suculento churrasco patrocinado por uma “vaquinha” entre todos.

O patrão pagou apenas uma jarra de suco.

Após muitos brindes ao “grande Tavares”, alguém pediu: DISCURSO! No que foi seguido por um coro: DIS-CUR-SO!! DIS-CUR-SO!!! DIS-CUR-SO!!!!!

Tavares, limpou a boca no guardanapo, levantou-se, pigarreou e agradeceu imensamente a surpresa da homenagem. Ao Sr. Youssef por tantos anos de convivência e aprendizado. E disse que iria dar uma notícia. O silêncio se fez. O que Tavares poderia contar de novidade na sua vida modorrenta? Tavares olhou cada um em seus olhos curiosos, suspirou, fixou o olhar no Sr. Youssef e disse que não voltaria na semana seguinte, mas que viria vê-los uma vez por mês.

O Sr. Youssef, indignado, com os olhos arregalados, perguntou:

- Coma vai você fala um coisa desse? Que tem? Loca?

– Não senhor Youssef, vou parar de trabalhar para viver a minha vida, respondeu Tavares calmamente.

– E vai vive da gue? Você non ter nada de seu! Só um abosentadoria miserável! esbravejou Youssef. Tavares respondeu:

- Vou viver do aluguel que o senhor me paga... Youssef deu uma gargalhada:

- Eu baga aluguel bra vilha do viuva! Como esse? Loca você?... Tavares sorriu:

- Sr. Youssef, o senhor me ensinou a trabalhar. Mas eu aprendi mais do que isso. Aprendi que sem projetos não progredimos. O Senhor só vê o dia de hoje, eu aprendi a ver o futuro e a me precaver. Comprei o prédio onde o senhor tem a loja...

– “Você vala GOMBRÔ o LOJA?? Você bobre, non ter dinhêro!! Com guê bagô? Rôbô caixa do loja?

Explodiu o patrão enfurecido. Calmamente Tavares explicou:

– Usei a BMW que o senhor ganhou na rifa e me deu de presente, porque não queria gastar dinheiro com a manutenção dela. Eu não usava, mas interessou muito aos filhos da viúva. Assim passei a ser dono do imóvel todo, a parte superior já está alugada para uma família amiga. Com a minha aposentadoria e os dois alugueres terei o suficiente para uma vida tranquila. Passarei meus fins de semana pescando vivendo a vida que sempre sonhei. Faço votos de que o Senhor também tenha pensado no seu futuro Sr. Youssef.... Obrigado por tudo!!

Os colegas, boquiabertos, aplaudiam entre exclamações: “ESSE É O CARA!”- “VIVA O TAVARES!”- “ISSO É QUE É SABER FAZER NEGÓCIAS, NÉ SR YUSSEF?”

Na sequência alguém pediu uma água para o Sr. Youssef que, depois de tantas surpresas, não estava passando muito bem...

GLOSSÁRIO

Ibn il-aHba = filho da puta

Khara = merda

Youssef El-Chedid = José O Forte

Aristeu Fatal, Alberto Vasconcelos e Cléa Magnani
Enviado por Aristeu Fatal em 11/10/2021
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