Conto das terças-feiras – Transportando um morto

Gilberto Carvalho Pereira, Fortaleza, CE, 5 de outubro de 2021.

Paulo e Jardeniro são dois primos, vizinhos, amigos e companheiros de birita, cachaça, para ser mais preciso moradores de um lugarejo distante 150 km de uma pequena cidade do interior cearense. O primeiro, proprietário de uma funerária, a única do local, que apenas fazia entrega dos defuntos para serem enterrados em cidades vizinhas, já que não havia cemitério local. A renda era pouca, quase não morria gente naquele longínquo e abandonado pedaço de terra esquecido pelos governantes. Essa situação impedia que a manutenção do carro funerário recebesse os devidos cuidados para o seu perfeito funcionamento. A funerária também guardava em estoque sempre de três a quatro caixões mortuários, na expectativa de uma catástrofe, isto é, morrer mais de uma pessoa por mês.

Certo dia, um senhor de 89 anos morreu e Paulo, naquele dia, não conseguiu colocar para funcionar sua Caravan 2.5 Comodoro S, 5 portas, cor verde, e teve que pedir ajuda ao primo Jardeniro para levar o corpo do defunto a ser enterrado, na manhã seguinte, em cemitério a 200 km de distância. Teriam que viajar à noite, para chegar pela manhã, antes das oito horas. Tudo preparado, o morto no caixão, o carro do primo idem, uma pick-up Corsa, 1990, funcionando perfeitamente. O horário de saída marcado para 21 horas iriam devagar, pois a estrada cheia de buracos não permitia desenvolver velocidade maior.

Chegada a hora foram os três, o morto no caixão, colocado na carroceria e bem amarrado e coberto com uma lona preta. Os dois homens acomodados na cabine da pick-up. Percorridos 40 km, eles resolveram parar em um bar onde estava acontecendo uma festa. Avaliaram que algumas horas bebericando um pouco e apreciando a festa não alteraria a chegada ao local de destino. O problema é que eles passaram da medida. A cachaça e o baile não lhes permitiram o controle do tempo. Lá para as tantas, Paulo falou que iria descansar um pouco e se dirigiu para a pick-up. Percebendo que não havia espaço na cabine, que guardava algumas coroas de flores, retirou o defunto do caixão e o colocou sentado no assento do motorista, devidamente apoiado na direção do veículo. Por brincadeira ainda, colocou os óculos no rosto do infeliz, para dar a impressão de que o veículo estava guarnecido, e foi tirar uma soneca deitado dentro do caixão.

Enquanto isso, Jardeniro, mais conhecido como Canarinho, pois cantava todas as mulheres que atravessassem o seu caminho, se engraçara com uma garota que dançava com um rapaz e lhe respondia com olhares maliciosos. Ele pegava seu copo de cachaça e oferecia para a moça. Já “mais pra lá do que pra cá”, resolveu ir em direção ao casal e pedir licença para dançar com a dançarina, que vinha aceitando seus acenos. O par da moça, mais forte que o ousado rapazola não gostou daquela afronta e partiu para a briga. Os dois se engalfinharam no meio do salão, o proprietário do bar, que não admitia arruaça em seu estabelecimento, jogou os dois na rua, e a briga continuou lá fora. Todos que estavam no bar foram para a rua, apreciar a desinteligência, alguns já apostavam dinheiro ou rodada de cachaça por conta do perdedor. Alguém sapecou um tiro de revólver para o alto, querendo acabar com aquela bagunça, colocar ordem no terreiro.

Paulo, que dormia o sono dos justos, acordou sobressaltado gritando:

— Que furdunço é esse? Não se pode mais tirar uma pestana, um cochilo sossegado!

Todos olharam em direção ao homem que acabara de se levantar do caixão de defunto, sem entender o que estava acontecendo. O suposto morto, queixando-se do calor infernal que estava fazendo, gritou:

— Alguém pode trazer um pouco d’água, estou morrendo de sede?

A turba, que nunca tinha visto tal situação, um morto sentir sede, correu. Uns tropeçando nos outros, gente caindo, depois de três minutos ou menos, não havia vivalma no eirado, apenas os dois contendores ainda brigando. Paulo separou-os sapecando um belo bufete nas fuças do adversário do primo, que caiu desmaiado. Mais do que depressa segurou Canarinho levando-o até à pick-up, acomodou o verdadeiro morto junto à porta do veículo, e o Canarinho entre ele e o defunto. Saíram dali o mais rápido possível, só parando dez quilômetros adiante para recolocar o falecido em seu pijama de madeira. Chegaram ao destino exatamente na hora aprazada, oito horas em frente ao cemitério, levaram o caixão para a capela mortuária, para o corpo ser velado pela família.

Paulo e Jardeniro dividiram o dinheiro recebido pelo transporte do morto e retornaram às suas respectivas casas. O primeiro, satisfeito porque com o dinheiro recebido iria consertar o seu veículo. O outro, porque teria dinheiro para a cachaça da semana.

Gilberto Carvalho Pereira
Enviado por Gilberto Carvalho Pereira em 05/10/2021
Reeditado em 05/10/2021
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