Conto das terças-feiras – Uma camisa para um irmão

Gilberto Carvalho Pereira, Fortaleza, CE, 28 de setembro de 2021.

Mudei-me para a capital paulista no início de 1963, para estudar, a convite de nosso irmão mais velho. Dois anos depois, também já trabalhando, vim gozar minhas primeiras férias em Fortaleza. A saudade de meus pais e irmãos era grande, foi uma alegria revê-los. Dois irmãos estavam fora, o mais velho, que a essa altura trabalhava na Comissão Executiva da Lavoura Cacaueira - Ceplac, em Itabuna e o segundo, Tenente do Exército, encontrava-se na Faixa de Gaza, a serviço da ONU, em missão de Paz.

Outro irmão apanhou-me no aeroporto e levou-me direto para casa, já era final de tarde. Naquela noite haveria um treino da seleção cearense de voleibol feminino, que se preparava para o campeonato brasileiro daquele ano, na quadra do América Futebol Club, localizada na Av. Dom Manuel, distante poucos quilômetros de onde minha família morava. A noite estava fresca, lua cheia, então fomos eu, meu irmão logo abaixo de mim e nosso pai, na ocasião diretor da Federação Cearense de Voleibol, a pé, até o local do treino.

Desde que eu me vestira para tal evento, notara que o irmão que nos acompanharia, insistia em olhar-me com admiração. Coloquei uma calça comum, nova, uma camisa de discretas listras azuis e vermelhas, intercaladas com fino fio dourado, que dava certo destaque a ela, também nova. O conjunto eu comprara, junto a duas calças e duas outras camisas, para usá-las em Fortaleza. Meu irmão revistara minha pequena mala, procurando não sei o quê. Não perguntei!

Já na calçada de casa o irmão tocou de leve na camisa, exclamando:

— Camisa de barão, irmão! Quanto custou?

— Não me lembro, na ocasião comprei mais algumas coisas.

Até chegarmos à quadra do América ele não tirara uma vez sequer os olhos de minha camisa. Falava, falava e olhava curioso para o meu lado, sempre focado na camisa. Eu já estava ficando incomodado, mas era o primeiro dia que conversávamos depois de dois anos de minha ausência. Éramos muito unidos, principalmente pela pouca diferença de idade, eu com 20 e ele com 19.

Sentados na arquibancada da quadra prosseguíamos no nosso papo sobre amenidades. Ele falava das paradas que eu perdera desde que me afastara de Fortaleza. Eu repassava fatos e momentos de minha vida em São Paulo, embora pouco expressivos, já que só estudava e trabalhava. Às vezes ficávamos calados, para prestar atenção ao treino que rolava na quadra, e também nas jogadoras, algumas muito bonitas. Nosso pai, ao lado do técnico da seleção, falava muito, só não sabíamos o que eles comentavam, a distância era razoável, mas o barulho que a pequena plateia fazia nos impedia de ouvi-los. O treino era com uma equipe local, acho que do Comercial Club, que contava com algumas atletas na seleção cearense. Apesar de cansado, estava satisfeito por me encontrar ali, local onde sempre comparecia quando havia jogos de futebol de salão ou voleibol. Foi uma noite bastante agradável. Ao término do treino, nosso pai pegou uma carona com o técnico e retornamos todos de automóvel.

Já na porta de casa o irmão voltou a perscrutar sobre a minha camisa. Em qual loja eu comprara? Se fazia tempo? Foi quando tive uma ideia:

— Tire sua camina, irmão! Fui enfático.

— Para quê? Perguntou ele assustado.

— Vamos, tire logo! Insisti.

Um pouco assustado foi tirando sua camisa muito devagar. Acenei com a mão para ele andar mais rápido. Nosso pai já havia entrado e gritava lá de dentro para entrarmos também. Ele se apressou e me entregou sua camisa. Rapidamente tirei a minha e o mandei vestir. Sorrindo, obedeceu.

—Pronto, agora ela é sua, faça bom uso dela!

Alisando a camisa que acabara de ganhar, perguntou:

— Estou vestido como um barão?

Balancei a cabeça expressando afirmativamente. Sempre sorrindo abraçou-me, chorou e agradeceu muito. Durante os quinze dias que passei em Fortaleza, de férias, o meu irmão, sempre ao sair para qualquer lugar, vestia a camisa de barão. Acho que ela fora lavada apenas duas vezes, mesmo ele tendo várias outras camisas. Esse é um dos episódios que até hoje guardo entre as minhas recordações. Ele realmente gostara do presente que recebera na primeira noite em que revivemos eventos assistidos na quadra do América, na Av. Dom Manuel. Depois isso nunca mais aconteceu. Constituímos nossas famílias, eu sempre distante, passando por Fortaleza rapidamente, ele trabalhando, ficou difícil reencontros desse tipo, mas nunca deixamos de ser amigos, irmãos amigos.

Gilberto Carvalho Pereira
Enviado por Gilberto Carvalho Pereira em 28/09/2021
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