O nome da fome

Não era um cachorro. Eram ossos cobertos por ralos pelos marrons enganando a morte. Os olhos queriam fugir da cara sem vida, mas sem forças, eram obrigados a esperar a morte com o resto do corpo.

- Passa! Passa! Passa! Xô imundície!

Não era por teimosia que o cão não saía do lugar. Era por fraqueza. Era por esperança.

Feio demais. Magricela demais. Cadavérico demais. Era nada demais. Era tudo de menos. Não despertava pena. Só repulsa. Enxotado, congelava-se em propósito maior que a repugnância.

Conseguiu apenas um biscoito jogado por um menino, que por ali passava. A mãe repreendeu a criança e a puxou pelo braço, acelerando os passos.

Um descuido do acaso acendeu vida em brasas nascidas no vazio do cachorro. Um entregador de marmitex estacionou a moto para verificar um endereço. Estava certo. Era ali mesmo. Abriu o baú deixando exposto aquele todo sagrado, aquela última ceia. O cão saltou de si, num descrédito da morte que o rondava, e derrubou a moto, espalhando bandejas pela calçada. Abocanhou um marmitex e disparou. O entregador, confuso entre recolher as bandejas e perseguir o cão, decidiu correr atrás daquele amontoado de ossos.

Testemunhas tomaram partido do motoboy e se juntaram na perseguição ao bicho esquelético. Ninguém entendia de onde surgia energia naquele quase-cachorro. Ele corria mais que todos. Era mais veloz que as pedras que lhe atiravam.

A pequena multidão foi se tornando menor ao longo do trajeto. Os mais persistentes acompanharam o bicho até ruas mais feias que ele. Lugar fétido, de barracos de sombras, de espaço de invisíveis.

Entrou em uma das casas.

Os que resistiram já não perseguiam bicho algum, já não mais pretendiam reaver o marmitex furtado. Curiosidade, motor de todo espetáculo, era o que movia aquelas pessoas.

Chegaram ao barraco e viram o cão cadavérico rosnando. Rosnados de proteção. Rosnados de cuidado.

Do lado de dentro, estava o marmitex intacto sobre um colchão velho. Também havia, sobre o colchão, um corpo imóvel de uma idosa.

O cão deixou seu posto de guarda para tentar o impossível. Empurrou a comida para mais perto da idosa, que não se mexia. Lambeu aquele velho rosto sem vida.

Nada mais podia ser feito. O cachorro apenas se deitou em silêncio respeitoso, velando quem a fome lhe roubara.

Osvaldo Júnior
Enviado por Osvaldo Júnior em 26/09/2021
Reeditado em 29/09/2021
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