O Rádio de Duas Vassouras
( Poesia Recitada - HH016 ).
Noite de chuvas, relâmpagos, trovões, telhado molhado, goteiras na casa, sons de pingos nos baldes, velas apostas em candelabros nas latas de leites, quase apagando, até charmosas na casa de madeira, onde os ventos se fartavam nas frestas, carcomidas pelos cupins.
Família de treze, fora a Mãe Cezê, onde morávamos no Bairro São Braz.
Enquanto a Mãe, nos cuidados precisos para a escadinha das idades, fazia os mimos um por um nos diferentes quereres, aos dias de nossas pequeninas vontades, que agora imagino: Santa Paciência!
O Pai Zé, Bombeiro, enfermeiro, nosso herói dos tempos em que ser criança, formava o invólucro da esperança por tempos melhores, na sua labuta intensa e eterna, buscava com esmero, o suficiente para trazer a alimentação e a educação para casa.
Nem lembro da minha idade, mas o causo anunciado, lembro muito bem e posso contar de acordo com meu vocabulário, para que não se perca da minha memória, no intuito do registro, para os meus, e a quem interessar possa.
Flamengo sem carteirinha, mas com muita paixão, e quando não em serviço em dias de jogos, o rádio à pilha, era o maracanã presente, colocado estrategicamente para transmitir com audições privilegiadas no seu canto sagrado.
Naquele fatídico dia, os relâmpagos do início não estavam ajudando muito na audição, com aquela catástrofe anunciando no ar, mas o jogo começa, e a perfeição da transmissão parecia não estar se importando com o caos meteorológico da noite em questão, pelo menos é o que eu esperava para uma boa gloria do esporte à partida, principalmente um Pai felicíssimo.
Os minutos foram passando, quando o gol do Bangu foi anunciado, com aquela emoção que os narradores tinham para apimentar seus torcedores rivais, e aumentar a audiência.
Tranquilidade aparente, nervos presentes, já fui me ajeitando na cama em que ficava do lado daquele espaço importante, fingindo a contusão, digo sono.
A temperança é pouca para o momento da inglória, pois em seguida os chiados da estação não sintonizada, fizeram valer o ambiente carregado.
Botão, dedos, giros e giros, antenas na direita, no centro, na horizontal, na esquerda... chiuuchuuu chiuuu chuiiiiii xiiiiiiii uchiiiiiii xiuíxiuí... E nada!
Rosto vermelho, dentes serrados, mãos irritadas, e eu com um olho fechado e outro semiaberto.
Agora pensando bem, podia até ficar com os olhos abertos, a concentração era direta e inequívoca.
A sintonia tinha obrigação de voltar.
De repente: Goooooooooooooooolllllllllllllllll. É golllllllllllllllll... Golllllllllllllllll... Gooooooooooooooolllllllllllllllll, do Flamengo!
Para felicidade que retornou, justamente no empate para, por um minuto abater a fúria eminente.
Chiuuchuuu chiuuu chuiiiiii xiiiiiiii uchiiiiiii xiuíxiuí... martelando novamente, e lá fora a tempestade insistente, colocando tempero na situação, a ponto de, no meu porto seguro, começar a ficar apreensivo do que poderia ocorrer em instantes.
Já avançando para o segundo tempo, naquele mesmo processo: Botão, dedos, giros e giros, antenas na direita, no centro, na horizontal, na esquerda...
E o inevitável aconteceu.
O Pai Zé, de forma clara e precisa, armou um muque no ar, veloz como uma marreta, de cima para baixo, desceu uma pancada no meio daquele rádio, fabricado de compensados, e quando levantou o punho, vinha junto com ele, chumaços de fiapos retorcidos, que se aprumaram qual vassouras, uma ao lado da outra, o que poderia dar o título de Rádio cabeludo, e assim ele ficou até ser trocado anos mais tarde por uma tv colorado preto e branco, quando aí, cores do maracanã tomaram conta daquele espaço, mesmo incolor.
Pois bem, o milagre ocorreria, na oportunidade, pois no fim do episódio necessário, a sintonia tomava de vez o seu lugar e assim foi, até o final da partida, sem antes é clara de ouvirmos a narração, minutos antes, do gol vitorioso, da virada espetacular, que ecoava com mais vigor, assim:
É Goooooooooooooooollllllllllllllllllllll. É gollllllllllllllllllllll... É Gollllllllllllllllllllll... ÉGooooooooooooooollllllllllllllllllllll, do Flamengo!
Aos pulos e agitadas mãos de contentamento, afinal, certo ou errado, sua atitude prevaleceu, que até eu, dei umas mãozinhas nas vibrações, de alívio é claro.
E não mais, esse valioso rádio desapontou, fizesse chuvas, ou chuvas e tempestades, pois às luas passando, não havia mais rancores, até a troca mencionada.
Lamento informar que não tenho o paradeiro deste instrumento para provar a veracidade do fato.