RUMOS
(CLÉA MAGNANI)
Ele era filho único e sempre foi um menino cheio de vontades. Nascido em berço de ouro, cursou colégios caros, faculdades as melhores. Estudou o que sonhou para sua profissão. Formou-se em Medicina, fez pós-graduação no exterior e abriu seu próprio consultório na área nobre da cidade de São Paulo. Realizado econômica e profissionalmente, dedicou-se a cuidar de pacientes classe A. Sua capacidade lhe trazia clientes que tinham como lhe pagar as caríssimas consultas e saiam satisfeitos pelos resultados do tratamento. Ocupado com novas técnicas que o levavam constantemente a congressos no exterior, ele não tinha tempo para se preocupar com família. Seus pais viviam muito bem, e mesmo bastante idosos, contavam com cuidadores particulares e todos os cuidados que ele podia lhes proporcionar. Ele já estava com 50 anos de idade e sua “ esposa” era a Medicina.
Ela, a terceira filha de uma família com seis irmãos, nascida numa cidade do interior nordestino. Cursou o ensino básico na Escola Pública da região, e vendia, nas ruas da pequena cidade, cocadas que sua mãe fazia, pois seu pai, analfabeto, vivia de pequenos trabalhos e nunca teve um salário constante. Mas aos 14 anos tudo ficou ainda mais difícil. Sua mãe foi buscar o filho menor na saída da Escola, e ao atravessarem a rodovia próxima de onde moravam foram atropelados por uma carreta, falecendo ambos no local. Seu pai, depois do acidente, entregou-se à bebida. Ela então deixou de estudar para trabalhar num supermercado como empacotadeira para sustentar os dois irmãos menores, já que os dois mais velhos haviam engravidado suas namoradas e ido morar com elas sabe-se lá onde. Ela fazia a comida à noite para deixar tudo em ordem e ia trabalhar. Lavava roupas à noite e trabalhava o dia todo. Uma família vizinha de muitos anos, disse que viria com o marido e um filho, para São Paulo, e se ela quisesse, poderia vir com eles pois as oportunidades de trabalho no Sul seriam muito maiores, ela poderia mandar dinheiro para os irmãos, que ficariam com uma prima casada, até ela poder mandar buscá-los também. Seu pai adoeceu devido à bebida e ficou internado na Santa Casa local. Com muito receio do que poderia vir a acontecer numa grande cidade, e também com seus dois irmãozinhos lá tão distante, com um pouco de remorso por deixar o pai tão desorientado e doente, ela fez sua maleta, pediu muita orientação a Deus, despediu-se da velha cidade e embarcou junto com a família da amiga, para tentar a nova vida.
(ARISTEU FATAL)
Viajaram de ônibus. Três dias. Numa das paradas cuja cidade ela nem lembra como se chamava, viu na rodoviária, uma fila de gente diante de uma loja com o nome LOTÉRICA, que nem sabia o que era. Pediu explicação a uma das pessoas, e conseguiu fazer uma aposta na Sena, que correria no dia seguinte. A menor aposta possível. A viagem seguiu, chegando em São Paulo dois dias depois. Havia até esquecido, e quando se dirigia com a família amiga para decidir para onde iriam, viu uma LOTÉRICA. Foi conferir o resultado e... quase desmaiou. Havia acertado em cheio, como única ganhadora. Vinte e dois milhões de reais! Manteve-se fria, não comentou com ninguém. Conseguiu se safar dos acompanhantes, pegou um táxi, e foi para o aeroporto de Congonhas. Apesar de sua falta de conhecimento, tinha ela facilidade de tomar decisões. Lá dirigiu-se à agência da Caixa Econômica Federal, e pediu para falar com o gerente, contando sua história. Claro que ele não acreditou na palavra da moça, mal trajada, simples, semianalfabeta. Todavia, após tanta insistência resolveu atendê-la. Tudo estava confirmado, e ele diante de uma milionária. Sem nenhum alarde, resolveu todas pendências relativas à situação. Tendo vindo do interior, pessoa simples, honesta, se propôs a ajudá-la em tudo, moradia, coisas pessoais, tudo o que uma cidade grande oferece, a quem não possui a mínima noção de onde vai se estabelecer. Por sua vez, ela sentiu a sinceridade do gerente, e logo o aceitou como orientador. Coincidentemente, no prédio onde morava, somente com a esposa, havia um apartamento vago, e a moça foi lá morar. Sua mulher logo fez amizade com ela e a orientou em tudo o que seria necessário para o bem-estar da nova vizinha. Já mais bem ambientada, a nordestina começou a pensar em trazer os irmãos e o pai. Para os irmãos maiores, pensou em comprar umas terras em Mossoró RN, pois já tinham experiência na plantação de melão, e poderiam seguir suas vidas. Os irmãozinhos vieram com uma prima solteira, que iria tomar conta deles. O pai resolveu ficar lá na Santa Casa. Então, começou a pensar em si. Queria fazer o curso de enfermagem, o que realmente fez, e três anos depois conseguiu o diploma. Foi contratada para trabalhar num dos melhores hospitais da capital paulista. Ali estavam os grandes médicos de São Paulo. Ela pensava toda noite sobre como sua vida mudou. Orava agradecendo tudo o que acontecera em sua existência. Como Deus fora bom com ela.
(ALBERTO VASCONCELOS)
A rotina de plantões estafantes e a discriminação, nem sempre velada, por sua origem e maneira de falar, desencantou sobremaneira o seu ideal sobre a profissão. Afinal, com o rendimento mensal que os bons investimentos lhes garantiam, ela não precisava, nem merecia passar por tudo aquilo. Pediu demissão e uma vez em casa, sentiu a incômoda sensação de inutilidade que acomete a todos os que, desde cedo, se acostumaram a trabalhar. A esposa do gerente do banco que se tornara sua amiga, fazia trabalho voluntário em hospitais da capital e foi através dela que, engajada na assistência a idosos, ela veio a conhecer os pais do doutor. Numa terça-feira quando ela estava lendo para o casal de idosos mais um capítulo de E o Vento Levou, romance da autora Margaret Mitchell, o telefone fixo tocou várias vezes, ela atendeu à todas, mas ninguém falava do outro lado da linha. Talvez na sexta ou sétima vez, uma voz abafada perguntou pelo doutor e ao saber que não estava, mandou que ela escrevesse o recado que deveria ser entregue pessoalmente e sem falta naquela noite, pois tratava-se de uma emergência. Ela anotou: “Gralha azul quer o resgate de Clave de Sol até a meia noite de hoje. Caso contrário, adeus calungas”, sem dúvida tratava-se de algo muito sério e ilegal. Ela não falou nada aos velhos para não os assustar e permaneceu na casa até a hora em que o doutor chegou para jantar com os pais como fazia semanalmente. – Que prazer encontrá-la aqui a essa hora, senhorita, meus pais elogiam bastante as suas visitas e eu agradeço a maneira como a senhorita os tem tratado. Como vai, depois que deixou o hospital? – Estou muito bem doutor e só fiquei até agora para poder lhe entregar este recado. As transformações na face, no olhar e nas atitudes do doutor, confirmaram a suspeita de que aquele recado se tratava de algo ilegal, muito perigoso e que envolvia gente da alta roda e do submundo do crime. O doutor indicou a varanda, falou ligeiramente com os pais e, falando o mais baixo possível, disse: – Isso é algo que eu não posso, nem devo lhe explicar, mas preciso de sua ajuda. E com voz de súplica, acrescentou, leve os meus pais para qualquer lugar aonde eles estejam protegidos e aguarde meu comunicado para poder trazê-los para casa. Dois dias depois, a manchete dos principais jornais, dava conta de que um famoso médico fora assassinado durante seu expediente no consultório particular e que um dos executores, de origem asiática, baleado pelos seguranças armados contratados pelo médico, faz parte da lista de procurados pela Interpol por pertencer à organização criminosa envolvida em tráfico internacional de órgãos. Sem parentes ou quaisquer outras alternativas, ela resolveu adotar os idosos para cuidar pessoalmente deles até que falecessem e, por não saber como identificar qual a parte da fortuna do médico era de origem ilegal, resolveu com a ajuda do gerente do banco, aplicar tudo e doar os rendimentos à AACD.