21 DE SETEMBRO, DIA DO LOCUTOR.
O homem chegou ao prédio. O velho Fusca enferrujado destoava dos outros carros no estacionamento. O jornal debaixo do braço. O agasalho vermelho da Adidas, com as três listras brancas nos ombros. URSS no peito, sigla da antiga União Soviética. Agasalho que fora presente de um atleta, na cobertura de sua quinta olimpíada. O celular tocou. Uma ligação de seu banco. -"Sei. Estou no vermelho, novidade. Vou passar aí depois." Ele subiu as escadas. As caixas de correspondência no hall. A sua caixa cheia de boletos e cartas de cobranças. Ele passou a mão pelos cabelos grisalhos. Ajeitou os óculos. Ligou pra sua irmã. -"Oi, Berta. Saíram os exames da mamãe?! Puxa, é Covid mesmo, minha irmã?" A lágrima caiu. Ele olhou para o horizonte, tentando buscar forças. A mãe, de oitenta anos, na distante Belo Horizonte. -"A gente se fala depois. Isso, mantenha a mamãe isolada. Vai dar tudo certo." A porta da kitnet, onde estava morando há um ano. As multas do síndico somadas as multas de trânsito. Ele abriu a geladeira quase vazia. Os lembretes de horários dos remédios da diabetes e da pressão. -"Tenho oftalmo as duas. Quase me esqueci." Um lanche rápido. -"Vamos de comida francesa, restô deontê." A mensagem da ex esposa no WhatsApp. -"Bom dia. Pensão atrasada dá cadeia, viu?" Ele atirou o celular no sofá. -"Quarto casamento e eu não aprendo." A ex ficou com a casa e os dois filhos. Vasculhou pastas de documentos. -"Achei um currículum. Vou distribuir no comércio." As fotos antigas no aparador. O jovem, cabeludo e com a cara cheia de espinhas, ao lado de duas lendas do rádio brasileiro, Osmar Santos e Gil Gomes. Era ele. A voz bonita e potente que cantava bingo nas quermesses da igreja de São Bento ganhava o microfone de lojas. Anunciava as ofertas e liquidações nas calçadas, munido com um microfone e uma caixa de som, na rua Vergueiro. Foi convidado por lojas da 25 de Março, onde foi descoberto por Eli Correa e levado ao rádio. O famoso locutor conseguiu-lhe um cargo de office boy na rádio. Era um começo. Após algum tempo, passou a auxiliar nas transmissões do futebol, anotando placares de outros jogos. Um comercial aqui, outro ali e foi ganhando espaço no ar. A voz alegre e firme era um dom. Um colega, repórter de campo, ficou doente e foi afastado. O moço iniciante foi jogado aos leões. Teria que substituir o companheiro, justamente num clássico entre Santos e Corinthians. As pernas tremiam. A mão tremendo e o microfone pesando. A chuva caiu. O rei Pelé na beira do gramado. A multidão de repórteres. Empurrado, não conseguiu a entrevista do craque. -"O que o Pelé falou?" Perguntou o radialista, apreensivo. -"Uma muvuca na saída do rei. Ouvi ele falando que sentiu o adutor. Pode ficar uma semana de molho. Vai daí, general." Inventou na hora, ganhando a simpatia dos ouvintes. Um dirigente do Santos o puxou. -"Venha. O rei viu que você foi empurrado. Ele vai falar só com você, no vestiário." Era a glória para o jovem. -"Estou ao vivo com o rei, nos vestiários!" Anunciou. A equipe da cabine não acreditou. -"Você está brincando, não?! Fala sério!" A voz do rei tirou as dúvidas. -"Sou eu, entende? Vou falar só com o garoto aqui. Tem futuro." Uma entrevista inédita de três minutos. O jovem locutor estava famoso pois sua entrevista ganhou os jornais da época. Anos depois, estava formado em jornalismo. Fez também propaganda e marketing. Era o mais novo contratado da rádio Bandeirantes. Estava no auge. Anos depois, tinha um programa só seu. Vários anunciantes. O espaço cresceu e ele ganhou outros programas. Aventurou-se na tevê aberta e chegou a cobrir duas copas do mundo de futebol. Estudava todos os esportes. Era um apaixonado pelo esporte, sempre apoiando projetos sociais. A chegada da internet. A idade avançando. As polêmicas e processos judiciais, somados as separações nos relacionamentos. Ele foi perdendo a saúde e espaço. A saída da Bandeirantes e o ingresso em uma rádio pequena. O seu programa de atualidades reduzido a meia hora diária. -"Temos que vender horários para as igrejas, é nossa saída pra quitar as dívidas!" Disse, a época, o gerente da rádio. O casamento. Um outro emprego numa imobiliária, pra aumentar a renda. A mudança para o interior do estado. Decidiu migrar do esporte para o sertanejo universitário, nova onda no momento. Um programa matinal. A mensagem do médico. -"Olá. Seu cateterismo, dia 23, não esqueça. Nada de empanturrar com os pastéis do mercadão, einh. Abraço." Estava com sobrepeso e cansaço. O ofegante sessentão caiu na poltrona. -"Tevê. Nada de bom. Só programa de culinária." Resolveu passar pelas antigas lojas e quem saber descolar um extra, um anúncio ou comercial talvez? As portas fechadas por causa da pandemia. O banco da praça. Os pombos. As pessoas passando. Ele entrou no banco. O guarda o encarou, quase o reconhecendo. -"Não é aquele antigo radialista?" Disse o guarda a moça do banco. A moça não deu atenção. -"Não é ele. Está diferente e de máscara." Pensou o guarda. Ele saiu do banco com um calhamaço de folhas do novo contrato de renegociação das dívidas. -" Boa tarde, guarda." Disse antes de passar pela porta giratória. O guarda sorriu. -"Esse vozeirão! Rapaz, é ele mesmo! O locutor famoso." Resolveu passar na casa do filho mais velho. Do portão escutou a gritaria da briga do casal. Deu meia volta e foi pra casa. Deixa a vida me levar, vida leva eu." Ele ainda acompanhava tudo sobre esportes e sobre o mundo sertanejo. As horas em frente ao computador. O caderno de anotações. -"Quem não se atualiza, perde espaço e o bonde." Disse a si mesmo, virando o copo de conhaque e dando uma baforada no charuto cubano que ganhara de Jó Soares quando foi convidado do programa, ainda no SBT. O celular despertou as três da madruga. Um banho e um café rápido. Pouco tempo depois, o Fusca saiu, ganhando as ruas vazias. O som alto, tocando Milionário e Zé Rico. A portaria da rádio. Os corredores. Um cumprimento aqui e alí. O estúdio vazio. O microfone no centro da mesa. A pauta do programa. Dez minutos para entrar ao vivo, nas ondas do rádio. Um gole de água. Sozinho. Só ele e o microfone. A vinheta de abertura. Os anunciantes. Ele respirou fundo e a voz potente inundou o estúdio. -"Bom dia, meu povo. Alegria no ar está começando. Mais um dia, mais um presente divino do criador a mim, a você, querido ouvinte. Vamos começar como sempre, com a oração da manhã. Vamos começar com fé, esperançosos em dias melhores, agradecendo e espalhando alegria!" A oração da Ave Maria. Ele estava radiante, transformado. Olhos brilhantes. Ali era sua praia. Aquilo era diversão pra ele. O mundo lá fora, acelerado. Ele ali, transmitindo alegria e divertindo os ouvintes. Alguns ligavam e entravam ao vivo, interagindo com ele. Fim de programa. O velho Fusca morreu, a caminho de casa. Uma caminhada de meia hora até a casa. -"Até o fuscão quer que eu faça caminhada! Esse é o meu presente no dia do locutor. Parabéns aos locutores do Brasil. Vida que segue!" FIM