Conto das terças-feiras – Surpresas da vida
Gilberto Carvalho Pereira, Fortaleza, CE, 21 de setembro de 2021.
Sentada em confortável poltrona, colocada estrategicamente ao lado da janela de sua sala de visitas, permitindo que o sol fornecesse luz e aquecesse o ambiente, Gizelly investiga cuidadosamente uma caixa que guarda fotos e cartas, pertencente à sua mãe. Ambas trabalham em um famoso hospital de uma determinada cidade, ela enfermeira e a mãe médica. De repente se depara com uma foto e um bilhete, dirigido a um velho médico, ex-diretor do hospital, recentemente falecido, que nunca fora remetido ao endereçado.
Mãe e filha nunca se deram bem. Gizelly a tem como inimiga, pois frustrara suas pretensões de ser médica, alegando que não tinha recursos financeiros para tal. Fora seu avô que custeara os estudos de sua mãe, em época que a família ainda tinha dinheiro suficiente para isso. Com a morte deste, o comércio que tinham foi à falência. A sorte foi que ela estava concluindo residência e um jovem médico amigo, filho do dono do hospital, a convidou para continuar ali, como médica contratada.
A mãe de Gizelly era muito competente e logo a amizade com o jovem médico tornou-se caso de paixão, com encontros furtivos, nas dependências do próprio hospital. O tempo passou e o dono do hospital faleceu, assumindo em seu lugar o filho. A situação para os amantes ficou insustentável. Durante o curso que estava realizando no Canadá, pago pelo hospital, Mirely, mãe de Gizelly deu à luz uma linda menina, cuja paternidade e a própria criança foram escondidas do pai, o agora dono do hospital onde ela trabalhava. A criança foi mandada para morar com os avós, em cidade do Sul do país.
Com receio de ser descartada, esse segredo nunca fora revelado. O parceiro casara-se e sua mulher tivera um filho. Daí em diante, embora trabalhando no hospital, o amor impossível, que eles chamavam aventuras de jovens inconsequentes, foi encerrado. Gizelly cresceu, só conseguindo ir para uma faculdade de enfermagem, de custos moderados, que a mãe dizia ser possível assumir. Quando perguntava quem era o seu pai, a resposta era sempre: ele desaparecera sem rastro. As duas só se reencontraram quando a moça terminara a faculdade. A dificuldade de conseguir trabalho na cidade onde morava com a avó, fizera a moça recorrer à mãe em busca de trabalho, já que com ela, conceituada no meio hospitalar onde nascera, seria mais fácil. O local indicado foi no hospital onde a mãe trabalhava. Aceito a oferta, as duas passaram a trabalhar na mesma área de atuação, no centro cardiológico, especialidade da genitora, surgindo daí reaproximação saudável, mas ainda distante.
Como o mundo gira e as histórias se repetem a enfermeira Gizelly e o filho do outrora amante de sua mãe iniciaram uma amizade que caminhava para um caso mais sério. Sua mãe começou a desconfiar e sempre que podia declarava que não a queria junto daquele médico “galinha”, que vivia pegando todas as enfermeiras do hospital, ele poderia desgraçar a vida dela. A enfermeira não entendia assim, e ia ficando, a cada momento, mais preocupada com aquela atitude da mãe. Por vezes chegava até a discutir, a brigar feio. Gizelly tentava entender o que ela tinha contra o médico, só por que ele era o filho do dono do hospital.
Mais uma vez a tragédia se abatera sobre o hospital, um ataque cardíaco fulminante levou o seu dono à morte, tendo o seu filho assumido o posto de diretor geral da organização hospitalar. Embora ela não tenha tido nenhum relacionamento íntimo com Evandro, até aquela data, isso a deixou bastante deprimida, pois ele se afastara completamente dela. Preocupada com o estado de saúde de sua filha, Mirely deixou à vista uma caixa contendo suas lembranças, ao alcance dela.
Era essa a caixa que ela bisbilhotava no início dessa história. Com um bilhete e uma foto à mão, ela percebera que o assunto e a foto diziam respeito a ela. Nervosa começou a lê-lo:
“Caro Adalberto, é com alegria que estou escrevendo para informá-lo que esta foto é de nossa filha, que mora com minha mãe em Santa Catarina. Fiquei grávida antes de viajar para o Canada. Antes tirei dois meses de férias, você lembra? Foi quando ela nasceu. Deixei-a com minha mãe quando ela completou dois meses de idade. Desculpe-me não lhe ter avisado antes, temia que o hospital pedisse a minha volta antes do início do curso. Não sabendo qual a sua reação, esperei mais um pouco para apresentá-la. O tempo foi passando e achei melhor dar tempo ao tempo. Depois você se casou, o que tirou toda a minha coragem. Desculpe-me!
Chorando muito Gizelly depositou o bilhete e a foto no fundo da caixa e pensou alto: — Então Evandro é meu irmão, que maldade! Levantou-se, depositou a caixa no lugar que sua mãe havia deixado, arrumou as malas e saiu de casa.