Insight

Casaram-se e foram morar no casarão que pertenceu aos avós do marido, apesar da contrariedade da esposa que preferia morar num pequeno chalé. Mas por tradição, o marido a convenceu que fossem morar no casarão que por ser bicentenário não era menos confortável. No entanto, as dimensões do casarão causava desconforto na esposa. O que faria ao longo do dia, pensava ela. Um sem número de portas que dava medo de pensar no que haveria por trás de cada uma delas.

A família, da não tão jovem esposa, havia perdido as esperanças do casamento, já que o temperamento enfurnado não ajudava em atrair os rapazes. Contudo, o rapaz encantou-se por ela assim que a viu pela primeira vez. O jeito taciturno da moça foi até um atrativo para ele, que também tinha um modo meio introspectivo.

A esposa vagou pela casa no dia que foi conhecê-la, mas não encontrou nada que a fizesse tomar de amores, até que viu uma porta nos fundos da sala de estar e quando a abriu notou as escadas escuras. Não dava para entrever onde daria o seu último degrau. Como o marido inspecionasse o andar de cima, resolveu se aventurar escada abaixo. Tateou as paredes até encontrar o interruptor, e de luzes acesas sentiu um estranho tremor percorrendo o corpo. Pela primeira vez sentiu algo que acalentasse sua alma naquela casa. Viu e experimentou o maior prazer em avaliar cada objeto. Admirou-se com o porta-chapéus, depois com uma velha cadeira de balanço. E por fim, um quadro no chão recostado a parede foi erguido por ela que passou a observá-lo com precisão.

Ficou ali até ouvir a voz do marido que a chamava insistentemente. Subiu as escadas e colocando somente a cabeça pela abertura da porta, chamou o marido a ir conhecer o porão.

Sem conseguir entender a euforia da esposa pelo velho porão, o marido a ouviu sem interrompê-la. E sem querer ser desagradável não emitiu nenhum parecer sobre o local tão sobrevalorizado pela esposa. Foi então que a convidou para irem juntos conhecer o lindo jardim, ao que ela recusou. Preferia fazer planos para a reforma do porão.

Nunca o marido a ouviu falar tanto, contrariado seu estado natural.

Nos meses seguintes vamos encontra-lá passando a maior parte do tempo no porão. Passando horas lendo, pintando e fazendo as principais refeições, inclusive com a presença do marido que pacientemente tentava convencê-la a assumir os demais cômodos da casa. Mas em vão, suas tentativas se frustam. E como quer o bem-estar da esposa desce e faz o gosto da amada em almoçar e jantar ali. Ao menos o quarto ela aceitou. E o café da manhã faziam na copa contígua a cozinha.

Um dia, quando o marido sai para o trabalho, ela se senta na cadeira de balanço para fazer a sesta. Em alguns minutos de cochilo é despertada por passos largos e fortes na calçada. Até então jamais ouvira algum ruído que viesse do lado fora. Haviam três pequenas janelas que colocavam seus olhos rentes a calçada. Procurou pelos passos que lhe chamaram atenção. Mas em vão, já deviam ir longe.

De volta a cadeira, prestou atenção ao movimento lá fora. Em instantes passaram outros pés com passos morosos, quase arrastados. Mas não teve pachorra para se levantar e espiar. Em seguida ouviu vozes alteradas, parecia uma discussão, os pés parados em sua calçada. Passou-se assim o dia, esperando pelos pés alheios.

No dia seguinte, quase no mesmo horário do dia anterior, tem novamente sua atenção desviada para os mesmos passos largos e fortes. E de alguma forma sua atenção se fixa no passante. Outra vez não consegue identificar os pés daquelas passadas. E durante quinze dias passou neste estado de curiosidade e frustração. Mas finalmente entendeu que devia se postar na janela antes que aqueles pés tão ligeiros passassem. O marido notou que a esposa estava mais apática e distraída de costume. Mas atribuiu tudo isso ao calor que fazia ultimamente. Pediu que ela tomasse um ar no jardim o que a deixou extremamente indignada.

Ela resolveu esperar de pé em fronte a janela. E pela primeira vez conheceu aqueles pés que tanto a intrigavam. Viu um sapato masculino meio desgastado pelo tempo. Não havia nada de mais, no entanto, continuou atentamente dia após dia observando com curiosidade somente aqueles pés. Ao fim de um mês não teve mais dúvidas resolveu ver de perto quem poderia possuir tanto poder em despertar sua curiosidade. Antes do horário costumeiro saiu ao portão e postou-se firme diante da calçada e esperou pelos passos costumeiros e não teve dúvidas ao ouvi-lo aproximando de sua casa.

Passaram e seus olhos fixaram somente no sapato, não houve um momento sequer que tenha lançado olhos ao dono do sapato. O passo era o mesmo, largo e apressado. Seguiu-o foi quase correndo para não perdê-lo. Depois como se fosse percebida a sua presença os passos se alargaram mais e mais. Mesmo assim ela acelerou, seguiu até perdê-los de vista, nunca soube que era o dono daqueles sapatos. Então parou, ergueu os olhos, olhou ao redor, contemplou o mundo a sua volta. Viu o céu maravilhosamente azul. Presenciou o espetáculo dos ipês floridos, sentiu o cheiro da pipoca vindo da praça. Sorriu e alegrou se com tudo aquilo. Voltou para casa e sentiu-se modificada. Algo se tornava diferente, contou ao marido ao regressar para casa. Este não entendeu muito bem o que ela expressava.

Desse dia em diante não mais se interessou pelos passos na calçada, nem pelo velho porão, ocupou os demais cômodos da casa, deixando tudo muito arejado e tomou gosto pela jardinagem.

Kelle Marinho
Enviado por Kelle Marinho em 16/09/2021
Código do texto: T7343656
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