Éramos Felizes

03.09.2021

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Mudei de casa inúmeras vezes ao longo da minha vida. Algumas, com ótimas lembranças, outras nem tanto, mas que construíram a minha história de cigano urbano. Puxei, talvez, ao meu pai, que nos fez mudar de casa oito vezes. Minha mãe sempre dizia que ele não parava em lugar algum. E eu também não, pelo visto.

Hoje, assentei o meu pouso em uma praia ao norte da ilha de Florianópolis. Mas, é provável que ainda faça uma última mudança, indo morar na casa da minha mulher, no centro da ilha. A casa dela é térrea e ampla. Estou envelhecendo, necessitando de conforto, o corpo não responde mais tão bem aos lances das escadas como as do chalé em que hoje moramos.

Toda essa reflexão se deu, dias atrás, ao caminhar pelas ruas do bairro em direção a um tabelionato, e no trajeto, coincidentemente, passar por casas que foram teatro de uma parte da história da minha infância, adolescência e maturidade. Elas são próximas ao apartamento que há anos comprei em São Paulo para os meus pais morarem.

Saí cedo naquela manhã ensolarada e quente, caminhando em direção ao cartório.

Cheguei a uma das casas na qual vivi por mais de 10 anos e tive bons momentos familiares. Mantêm ainda as características daquela época. Nela, passei de criança a adolescente, com todas as alterações físicas e psíquicas peculiares a essas fases. Parado em frente, lembrei das brincadeiras de criança. Passava as manhãs na rua com os amigos, subindo e descendo com carrinho de rolimã ou bicicleta. Era uma farra.

A cidade naquele tempo era bem mais tranquila, permitindo ficarmos no asfalto por longos períodos sem aparecer qualquer veículo. Bons tempos! Desci, então, até a rua transversal, local em que jogávamos futebol de “um passo” (colocávamos como gol dois tijolos separados por um passo) ou disputávamos partidas de “taco” ou “betsi”, um tipo de críquete abrasileirado. Olhando a rua agora sem “vida”, diferente da minha época, percebi que éramos felizes com muito pouco. Bons tempos!

Relembrando ali esses momentos inesquecíveis, veio-me à lembrança a transição de menino para adolescente, nos meus doze a treze anos de vida. Apareceram as meninas, fazendo-nos mudar o nosso interesse. As mulheres sempre a nos dominar. Elas, as irmãs, haviam se mudado para uma casa em rua paralela a minha.

Caminhei para essa rua, a das “meninas”, que terminava na que estava. Algumas vezes, jogávamos partidas de futebol e taco bem em frente à casa delas. Parei, olhando frontalmente o imóvel mantido como antes, reavivando as lembranças. Eram duas as irmãs: uma mais velha, linda aos nossos olhos, de cabelo loiro, liso e comprido, magnetizava a nossa atenção, porque assistia a nossas batalhas debruçada na mureta de divisa da sua casa com a calçada da rua, impávida e majestosa, como uma princesa. A outra, mais nova e não tão bonita, mas mais participativa, às vezes, jogava conosco algumas partidas, substituindo um dos nossos e jogando melhor do que um de nós. Para nós, quase um menino!

Morei, também, logo que me casei, no único prédio de três andares, nessa mesma rua das “meninas”. Na minha época de criança, tinha ali um zelador português rabugento, que sentado em uma mureta assistia ávido as nossas traquinices, para segurar ou furar, com enorme prazer, as nossas bolas que, por acaso, ali caíssem. Visualizei a sua fisionomia: usava óculos com lentes fundo de garrafa, pintava de preto o seu parco cabelo e usava seu bigodinho a "La Clark Gable". O seu nome não consegui recordar. Logo que nos mudamos para o prédio reencontrei sua esposa, então a zeladora ali e soube que falecera há algum tempo. Ela lembrou-se de mim e de nossa bagunça. Disse, então, para o meu espanto, que ele gostava das nossas brincadeiras. Foi uma revelação inesperada.

Voltei a caminhar, para o cartório nesse dia de calor forte, divagando com os meus pensamentos sobre os tempos de menino pré-adolescente e adulto ocorridos no teatro dessas casas da minha vida. Boas lembranças, bons tempos!

Fernando Ceravolo
Enviado por Fernando Ceravolo em 07/09/2021
Reeditado em 07/09/2021
Código do texto: T7337363
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