“Mansarão que dorme o ônibus leva”

Por meio das chaminés da cozinha daquela escola agrícola, a fumaça saía ofegante e misturava-se com a chuva que insistia em cair naquele frio e nublado final de tarde de domingo. Enquanto as paredes dos aposentos suavam por causa da intensa umidade, o alto gramado frontal estava virando um banhadal devido às constantes pancadas de chuva daquele inverno catarinense. No horizonte, a neblina despontava intrometida, encobrindo as terras do colégio e ameaçando chegar até à entrada principal do educandário. Os belos canteiros de azaleias e hortênsias dariam uma aura mais convidativa ao ambiente - a não ser que eles te lembrassem da sofrida aula prática de preparo do canteiro para o plantio. Como trilha sonora, o sertanejo universitário que estourava as caixinhas de som e os gritos dos assíduos jogadores de truco anunciavam o findar de mais um dia de plantão nos setores agropecuários do colégio.

Subindo o morrinho que rumava às saídas daquele lugar, encontrava-se Alexandre, o destemido agricolino que, na época, também era conhecido como lacaio, pois essa era a alcunha dada aos calouros do ensino médio daquela instituição. O jovem caminhava de forma bastante desengonçada, pois precisava carregar uma mochila nas costas com seus materiais escolares, outra mochila na barriga com as roupas sujas da semana, uma sacola na mão esquerda com as suas botas de trabalho e um guarda-chuva na outra mão para tentar se defender um pouco da tempestade. Ele acabara de cumprir o seu primeiro plantão de fim de semana no colégio (ainda restavam dois naquele ano), em que ele precisou tomar conta, junto com dois colegas, do famigerado setor de suinocultura, o qual era evitado ao máximo por ter vários serviços e exalar um cheiro muito forte e desagradável.

Como o estudante era semi-interno, ele precisava ficar, durante os dias letivos, o dia todo na escola e retornar para casa no anoitecer. No entanto, quando tratava-se de cumprimento de plantões, era permitido que esses alunos dormissem na escola, junto com os estudantes que faziam parte do internato, e foi justamente isso que Alexandre fez. Porém, o pobre coitado não se acostumou com aquele dormitório: eram pessoas caminhando pelos corredores durante a noite, batendo portas, acendendo luzes, conversando e mexendo no celular. Por isso, o pouco que ele conseguiu dormir não foi suficiente para descansar. Sua exaustiva semana de aulas culminou em um fim de semana azarado e cheio de trabalhos junto aos porquinhos o que, logicamente, exauriu sua disposição jovial, dando lugar a uma canseira tremenda.

As dependências da escola ficavam a uns trezentos metros da rodovia onde o ônibus passava, o que obrigava os miseráveis alunos a fazerem esse trajeto a pé, inclusive quando chovia impiedosamente, como nesse trágico dia. Por ora, o moço precisava esquecer-se do cansaço para poder correr e se esquivar dos baldes de água que caíam torrencialmente e lhe molhavam toda a roupa. Finalmente, ele chegou sozinho ao ponto de espera do ônibus, o que não resolveria muito o problema do encharcamento da chuva, pois a casinha tinha aberturas laterais e goteiras no telhado. Agora, ele só necessitava de alguns minutinhos para embarcar no veículo que, aparentemente, lhe traria um pouco de paz depois de tantos infortúnios. Os períodos vespertinos acabavam às dezessete horas, mas o ônibus passava lá só às dezoito. Além disso, as viagens de nosso querido Alexandre demoravam em torno de uma hora, pois ele morava a uns quarenta quilômetros de distância da escola.

* * *

Em todo dia normal de aula, ele e mais uns vinte alunos de lá enfrentavam o mesmo desafio: encarar as intermináveis viagens de ida e volta com o ônibus de linha –carinhosamente chamado de busão- cujas passagens eram pagas pela prefeitura. A lista de atividades que essa galera fazia dentro do busão era consideravelmente variada. Os estudiosos mais aplicados, como Alexandre, optavam por fazer algum dos infindáveis compromissos estudantis daquela escola, como estudar para alguma prova ou fazer determinado trabalho. Também tinham aqueles que só se interessavam em ficar de boa assistindo alguma coisa no celular ou namorando com o pessoal de outra escola, que também frequentava aquelas poltronas. Por outro lado, o pessoal da bagunça gostava de jogar truco -para não perder o costume-, escutar música alta e fazer aquele lanchão com porcaria. A única prática implicitamente proibida lá dentro era dormir, pois a turma da baderna poderia te sacanear rabiscando o seu corpo ou escondendo os seus materiais. Nesse dia, Alexandre acrescentaria mais um item entre as desvantagens dessa ação.

O tão almejado ônibus até que enfim chegou! Entretanto, a boa-nova veio acompanhada com mais um desgosto, pois o motorista parou bruscamente em cima das poças de água suja em frente ao ponto de espera, o que fez respingar bolotas de barro ao redor, inclusive no já molhado e detonado agricolino. Mas tudo bem, ninguém mandou ele estar carregando tantas coisas que dificultassem a atenção no que acontecia nos arredores... A porta do busão abriu-se e Alexandre entrou olhando para baixo, fingindo nem conhecer o motorista atrapalhado que acabara de lhe deixar com a roupa pintada de marrom. Quisera ele saber que não deve-se criar inimizade com motoristas de ônibus. Depois de ter subido os degraus, ele notou que havia três velhinhas grisalhas conversando animadas nos bancos da frente e mais um bêbado moribundo importunando a coitada da cobradora. Logo após, ele foi caminhando através do extenso corredor do busão, enquanto suas sacolas debatiam nos bancos e o guarda-chuva fazia um rastro de água por onde passava.

Devido à pouca lotação do coletivo, ele decidiu ir sentar nos últimos bancos, algo que ele não fazia rotineiramente porque, em dias normais, a turma da bagunça monopolizava aqueles assentos e impunha consequências drásticas àqueles que ousassem se inserir lá sem a devida permissão. As velhas poltronas azuis estofadas com uma espuma de qualidade medíocre e rabiscadas por canetas eram mais do que perfeitas para um relaxamento dominical após tanto perrengue. Até demais. Alexandre nem teve tempo para refletir suas possibilidades; assim que ele sentou no assento e ajeitou-se a par da janela de vidro suada, o sono foi imediato. O barulho da chuva sem trovões, o relativo silêncio atípico do ônibus e a exaustão física e mental contribuíram para o pleno adormecimento do garoto. Quando o sujeito está acabado de cansaço e sono, uma dormidinha é uma ótima pedida. Mas nesse caso, definitivamente não foi uma boa ideia. O estrago estava consumado. Foi uma pena que a severa ingenuidade dele não se deu conta do perigo que estava a sua frente.

A cobradora, para tentar se livrar das investidas do embriagado, foi se juntar às idosas, para bater um papo com elas enquanto aguardava a monótona viagem acabar. Porém, o petulante homem não desistiu e foi incomodar as mulheres na parte frontal do veículo. O motorista viajado, como de costume, começou a contar seus causos engraçados de viagens que realizara pelo país, o que atraiu a atenção de uma velhinha curiosa que não parava de pedir detalhes das estórias. Aos poucos, o interesse dos cinco passageiros foi sendo concentrado na contagem de acontecimentos engraçados de passeios coletivos. Mal sabiam eles que logo teriam mais um episódio cômico para repassarem a seus conhecidos. Por isso tudo, o infeliz estudante foi completamente esquecido no fundo do busão. O trajeto de volta passa por seis cidades: São Miguel do Oeste -cidade da escola-, Cruzinhas, Descanso, Belmonte -onde mora Alexandre-, Santa Helena e Tunápolis. E adivinha aonde o pobre lacaio foi parar? Exatamente, justo na garagem do busão, na última cidade.

Chegando no destino final, a entediada cobradora foi fazer a sua última atividade do dia. Ela sempre precisava refazer todo o percurso do corredor do ônibus para endireitar as poltronas que pessoas folgadas ocuparam, fechar eventuais janelas e cortinas abertas e checar se alguém esqueceu algum pertence. Naquele dia, contudo, ela teve mais uma tarefa: checar se algum desavisado esqueceu de desembarcar do ônibus na parada certa e, consequentemente, acordá-lo de seu sono profundo. Foi aí que Alexandre sentiu batidinhas repetitivas em seu ombro direito e, de súbito, pulou assustado, derrubando suas sacolas no chão. A jovem, de sobrancelhas arqueadas de tão atônita, irrompeu-se em gargalhadas espalhafatosas, as quais foram ouvidas pelo motorista, que até já estava desembarcando do veículo. Já de pé, por causa do susto inicial, o adolescente confuso e estarrecido elevou suas mão à cabeça e começou a proferir uma ladainha infinita de perguntas. O motorista já tinha retornado para dentro e, rapidamente, se deu conta do acontecido, o que só fez aumentar a sinfonia de risadas escandalosas mescladas com as lamentações e o choro irracional.

Foi somente depois que os ânimos acalmaram que o jovem foi capaz de entender a dimensão da enrascada em que ele tinha se metido. Percebendo que as suas roupas já não estavam mais tão úmidas, notou que já era bem mais tarde do que o normal e que o seu celular marcava oito horas da noite! Já mais sossegado, o motorista contou, por primeiro, que eles tiveram que ficar em torno de uma hora parados no trânsito, porque tinha acontecido um acidente feio com duas carretas carregadoras de leite. Com isso, os bombeiros e o guincho demoraram uma eternidade para chegar, o que ocasionou a interrupção das vias por um longo tempo. Foi aí que o estudante admirou-se com a incrível capacidade de sua canseira fazê-lo dormir tão intensamente. Porém, o maior susto foi quando lembrou-se que seus pais estavam viajando e que, por isso, não tinha ninguém em casa que poderia buscá-lo. Além do mais, o azarento recordou que ele não tinha familiares ou amigos que morassem em Tunápolis ou ali pelas redondezas e que pudessem lhe dar hospedagem ou uma carona para casa.

Dessa forma, os dois funcionários da empresa de viação tentavam fingir os olhos revirados que eles faziam inconscientemente. No entanto, em uma tentativa de se redimir por acidentalmente ter sujado o jovem com barro, o motorista compadeceu-se da situação e resolveu conversar mais seriamente com o garoto. Assim sendo, o adulto responsável decidiu perguntar ao estudante sobre quem ele era e de onde vinha. Foi aí que, em uma momento de sorte no meio de tanta desgraça, o motorista descobriu que conhecia o pai do jovem, pois já tinha feito uma excursão com ele há alguns anos, da qual guardava ótimas lembranças.