FRANCISCO

- ARISTEU FATAL

Francisco era um cidadão negro, obeso, estatura média, setenta e poucos anos, advogado ligado ao serviço público, mas que também militava na profissão com um escritório particular. Financeiramente estava bem. Solteiro convicto, gostava da noite. Morando, nos arredores de São Paulo, nos fins de semana, era raro deixar de frequentar as boates da capital paulista. Tinha muitos amigos, sendo que, às vezes, ia na companhia de alguns deles. Abusava de bebidas alcoólicas. Determinada ocasião, num daqueles “inferninhos”, como eram chamados aqueles estabelecimentos, estava acontecendo um show de famoso cantor brasileiro, sambista negro, quando Francisco, entre uma música e outra, solicitou ao artista, chamando-o de “negão”, determinada canção, tendo recebido como resposta do mesmo que, primeiro, “a música pedida não constava do seu repertório”, e, segundo, “que negão era seu passado”. Essa última frase, recebida até com certa contrariedade, caiu como um raio na cabeça do Francisco, e daquele dia em diante, nunca mais a esqueceu. Sempre que chamado por negrão, o que era comum entre os seus amigos, a resposta vinha como uma lufada de vento, “negão era seu passado”. Na vida particular, Francisco morava com uma irmã, também solteirona, mais velha que ele, funcionária pública, já aposentada. Seu nome, Marilda. A vida dos dois seguia normal, porém, acometida de certa doença grave, Marilda veio a falecer. Sem filhos, sem os pais, há muito falecidos, o imóvel que era dela passou para Francisco. Outro irmão, o Januário se credenciou também como herdeiro da irmã. Aí começaram sérias desavenças. De surpresa, apareceu Rosalina, uma mulata que foi doméstica na casa de Marilda, com um filho alegando que era de Francisco, o que ele negava de “pés juntos”. Porém, haviam dúvidas, já que tempos passados aconteceram casos amorosos entre os dois. Então, quando parecia que tudo se resolveria de maneira tranquila, houve necessidade de contratação de advogados, pois cada parte quis o seu, de perícias, de exames de paternidade, de provas testemunhais, e tantos outros procedimentos judiciais, que tumultuou a vida de todos os interessados na herança da Marilda. Francisco, que a vida inteira sempre se esmerou por ter suas coisas em ordem, se viu numa enrascada que jamais previra, apesar de ter contra si, a questão do alcoolismo, e de suas noitadas na boemia. Mas, como tudo pode ser resolvido, pensou, vou enfrentar essa pendência, como tantas outras que já tivera.

- ALBERTO VASCONCELOS

Tempos atrás, quando jovem, logo depois de assumir seu cargo no serviço público, Marilda foi destacada para servir no interior do Estado e lá se envolveu num relacionamento amoroso com o coletor estadual, homem de respeitabilidade irretocável, casado com vários filhos e desse relacionamento, teve uma filha que, por conveniência dela e do coletor, foi entregue aos cuidados das Irmãs de Caridade, em comum acordo com a Superiora da Ordem religiosa e cujo internato passou a receber, mensalmente, contribuições generosas tanto da Marilda como do coletor, cujos nomes não poderiam ser de conhecimento nem do público nem da criança que cresceu forte e saudável, sabendo apenas que havia sido deixada na porta da casa das freiras, vindo mais tarde a tornar-se uma delas. Apesar desse segredo, que foi para o túmulo com o coletor, ter-se mantido, havia um documento registrado em cartório com a descrição de todos os bens da mãe, que quando de sua morte, passariam para a filha, pertencente à Ordem das Irmãs de Caridade. Marilda manteve por toda vida, estreito contato com o internato e apesar das demonstrações de amizade e carinho com a, agora adulta, Irmã Conceição, nunca revelou quem eram os seus pais, mas deixou com ela um envelope pardo, com a recomendação de que somente deveria ser aberto quando a freira tomasse conhecimento de sua morte.

A irmã Conceição, treinada por toda vida em obedecer e acostumada a cumprir as promessas, chegou a esquecer de que havia colocado no fundo da sua malinha o tal envelope e foi a Madre Geral, já muito velha e acamada que, quando chegou a notícia da morte de Marilda, lhe disse que estava na hora dela abrir o envelope e tomar conhecimento de sua origem e que gostaria de estar com ela no momento da revelação para esclarecer algum ponto que viesse a lhe perturbar a tranquilidade. O envelope continha, além do documento da herança, a certidão de nascimento e duas cartas, dela e do coletor, explicando os motivos da atitude que eles tomaram, tanto para preservação própria como para ela, visto que seria rejeitada como pária da sociedade em que viviam. Enquanto isso, Januário juntou ao processo de partilha de bens, várias notas promissórias, contrapartida de um vultoso empréstimo que ele havia feito à irmã, cujos resgates estavam sendo feitos, nem sempre, nas datas aprazadas, conforme descrito no livro Contas a Receber do seu escritório de Contabilidade, onde o seu irmão Francisco figurava como sócio minoritário.

- CLÉA MAGNANI

Toda a calmaria das sete décadas de vida de Francisco, veio a se transformar num redemoinho onde fatos e pessoas, já arquivados pelo tempo, surgiam agora com a morte de sua irmã, como assombrações a ameaçar sua tão aguardada tranquilidade. Como se não bastasse o filho que Rosalina lhe apresentara, agora, e que requeria seu direito à sua parte na parte da herança do pai, cai do céu, irmã Conceição, a herdeira legítma e documentada, que faria com que a casa de Marilda, fosse totalmente entregue a ela, e que pelo apreço com que foi criada pelas Irmãs, passaria para a Ordem Religiosa naturalmente. Além disso, Januário, que também perdera a partilha, via no recebimento das promissórias avalizadas pelo irmão, o retorno de seu empréstimo, pois Francisco era um devedor documentado. E isso preocupava muito Francisco, pois como nada teriam a receber da herança, ele não teria como pagar Januário com a sua aposentadoria, além de ter de procurar onde morar. O homem quase enlouquece... Passa noites em claro... faz promessas a todos os santos que conhece... Consulta Pais de Santo de toda a região... O sal grosso que usou em seus banhos de descarrego já estavam entupindo os encanamentos da casa... Ele falava sozinho, andava pelas ruas conversando consigo mesmo e abanando a cabeça negando as soluções que não lhe eram cabíveis. Quem o conhecia afirmava que Francisco deveria estar ficando doido. Enquanto tomava seu magro café naquela manhã, numa folha do papel que embrulhava o pão escreveu detalhadamente todo o seu plano infalível! E foi procurar a sobrinha Irmã Conceição. Ao chegar às portas do velho casarão cercado por jardins de roseiras, Francisco quase desistiu. Ali reinava um clima de paz e acolhimento que o faziam quase desistir da ideia... Mas, respirou fundo, e bateu palmas no portão. Ao se apresentar como tio de Irmã Conceição, foi encaminhado à salinha de recepção. Logo aparece sua sobrinha que timidamente lhe estende a mão e se senta à sua frente de olhos baixos, Francisco começa lamentando por não a conhecer antes e pela morte de sua tão estimada irmã. Quiz saber como era sua vida ali e ao saber que ela fizera voto de pobreza, sentiu que tinha uma chance! Se oferece para vender a casa e assim ela poderia doar parte do valor para a Congregação. Ela aceita e o agradece muito pela ajuda. A casa é vendida, ele retira sua polpuda comissão, paga Januário, casa-se com Rosalina, assume a paternidade do “seu” filho, vai morar na casa da esposa e todos vivem felizes para sempre!