Entardecer

Meses se passaram desde a última balbúrdia que eu escrevera. E cá estou, diante de um dos cenários, a tarde, a qual sempre foi o palco para sempre tecer algumas palavras sobre algo fútil em minha vida medíocre. Meses se passaram desde as belas observações do mundo, desde os últimos entardeceres, os laranjas formidáveis tomando conta das minhas e de nossas dores. De repente, hoje, neste exato momento, nesta tarde, sou convidado por forças misteriosas, as quais nos rodeiam pela vida sem compreensão de nossa parte, a escrever. Meses se passaram desde os últimos versos, nem ao menos lembro-me quais foram, talvez já eram versos apocalípticos, trazendo já em si o perecimento. Caso acompanhaste-me até aqui, leitor, peço crença na exatidão do momento. Sem revisões, estou agora mesmo, escrevendo, quase sem interrupções, essas tolas palavras. Sem alterações, sem análises, vou caminhando por elas e elas tomam-me como em outros momentos. Em certas ocasiões, escrever diante à tarde, a esse instante de tormenta, de contemplação do céu, dos astros, do vermelho alaranjado invadindo o azul e sendo tomado pelo roxo que precede o preto da noite, seria angustiante e inspirativo; hoje, particularmente, leitor, sinto apenas a perca de calor, da intensidade do dia, das memórias relutantes, carnívoras memórias que atropelam o meu estado de vanguarda. Em outras ocasiões eu me deteria às cores, ao espetáculo de luzes, não os ignoro agora, porém seus efeitos já não passam de futilidades igualmente essas letras. Paro e espreguiço-me, os cachorros latem lá fora, e a janela continua aberta, por ela passa frio, frio não, brisa, brisa talvez seja mais inquietante e dominante. O frio é forte, intenso, é como um deus sem misericórdia, um rei agindo sem pensar, é brutal. Brisa, brisa é tocante, sensível e traiçoeira, é legitimamente um bobo da corte, um súdito tramando contra o rei, é envolvente. O tempo não muda. Estava cá eu outras vezes, ou em outras janelas, e descrevia as alegrias, angústias e sonhos com a mesma tarde de fundo, o espetáculo no céu durava pouco e a noite combatia-o em minutos. O tempo não muda, mal olhei para o céu, mal escrevi e a tarde já se anoiteceu. Também eu entardeço mais uma vez, também eu coloco-me em mais uma divagação sobre tudo, também eu enfureço-me sobre essa prisão. O tempo não muda. A energia misteriosa que envolvia-me no começo dessas frases já se fora há alguns minutos e o que sobra agora ? O que sempre sobrou, um ser miserável feito de instantes e de duras perambulações no nada, na vadiação, na busca em atender a essa incessante lacuna. Caro louco leitor, meu maldito leitor, já percebeste tu a indelicadeza da vida, a incompreensão maligna existente em nossas relações com o tempo. Leitor, pobre leitor, maldito leitor, não venhas tu dizer, não a mim, mas a ti próprio, sabedorias como as que acreditam em que o tempo é o senhor de tudo e de todos, não trata-se disso, maldito leitor. Já é noite, canso-me desta tentativa de vasculhar em mim e a ti algum entendimento sobre entardeceres, brisas, noites e tempo. Chamo-te a ti de maldito pois maldito és, maldito sou, maldito sempre será o tempo, e não termino estas palavras com um basta, pois o tempo nos acudiria com sua majestosa repugnância e não nos deixaria bastar. Termino, assim como um prisioneiro algemado, uma tarde entardecida, termino, após meses, sendo apenas o mais prolixo possível: o tempo não muda.