O CONSELHEIRO
(ALBERTO VASCONCELOS)
Na tarde quente de verão, Heleno estava sentado num dos poucos bancos que escapara do vandalismo da molecada sem educação cuja diversão é destruir o que a sociedade lutou por longos anos para construir. Apenas o som monótono do jorro d’água caindo dentro do tanque do chafariz onde a deusa, sem cabeça, segurava uma cornucópia em ruínas. A lâmina d’água refletia em ondulações a claridade do céu muito azul, com fiapos de nuvens em desabalada carreira como se a pressa de chegar em algum lugar fosse maior que tudo. Heleno passou os olhos mais uma vez pela página dos classificados onde anotara as ofertas de empregos que, talvez, conseguisse a colocação que há tanto tempo necessitava. Nas últimas semanas o dinheiro para a compra do jornal de domingo fora gasto inutilmente. O caderno de classificados estava repleto de anúncios, mas nenhum que se ajustasse ao seu nível de escolaridade e de experiência. Ele poderia mentir. Poderia dizer que tinha experiência para os serviços, mas e se fosse descoberto? Se fosse mandado embora por incompetência? As empresas se comunicam. Elas avisam às outras as deficiências dos candidatos, mesmo quando esses não indicam essa ou aquela empresa como fonte de referência. Foi um ex-colega seu que trabalhava no setor de RH quem lhe avisara. Honestidade é tudo o que as empresas valorizam – foi o que ele disse na ocasião. Aquela vaga de almoxarife na fábrica vizinha da sua casa seria ideal. Nem precisava pegar transporte. Eram só dois quarteirões. Poderia sair de casa faltando apenas dez minutos para o início do expediente e ao final do dia, só mais dez minutos para estar em casa. Mesmo que o salário não fosse lá grande coisa, só não ter preocupação com engarrafamentos, greves de motoristas, alagamentos e principalmente, pagar passagem, era tudo de bom. Com toda certeza ele seria o primeiro da fila no dia seguinte. Só não ia se apresentar hoje mesmo porque era domingo e na fábrica só tinha o pessoal da vigilância. O serviço de almoxarifado só exige que a pessoa saiba ler e fazer as quatro operações e isso ele aprendeu muito bem quando estudou no grupo escolar. Dona Mercedes, podia até saber pouco, mas sabia ensinar e ai daquele que não soubesse a resposta durante a sabatina diária, pouco antes da sineta tocar encerrando o horário das aulas. Absorto em pensamentos, Heleno não se deu conta que um homem de aspecto maltrapilho se sentara na outra ponta do banco, até que ele falou – está procurando emprego meu jovem?
(ARISTEU FATAL)
- Sim, respondeu Heleno! Ao se virar, notou aquele homem que, apesar de mal vestido, tinha um semblante sereno, ficando impressionado com a postura de seu interlocutor. Era um desconhecido! Heleno nascera em Trabiju, pequeno município do interior de São Paulo, situado na região de Araraquara. Tinha 36 anos. Estudou na escola primária da cidade, e por ser de família de poucos recursos, filho único, arrimo de casa, mãe viúva, não pode prosseguir. Seu último emprego, fora na estação de trem, vendedor de bilhetes. Quando a ferrovia foi extinta, perdeu a função. Com isso, ele e a mãe mudaram para Araraquara, onde teriam maiores oportunidades, dado ser esse um município rico, com boa quantidade de indústrias, um comércio muito bom. Sua mãe logo arrumou emprego como doméstica, na casa de um industrial. Dona Idalina, seu nome. Naquele domingo, estava ele na pequena praça do longínquo bairro onde foram morar, num barraco da favela. Antenor, o homem desconhecido, antes de tudo, falou de sua vida. Desiludido, principalmente por motivos amorosos, abandonado pela mulher, destratado pela família dela, caiu na bebida, tornando-se mais um habitante da rua. Uma história bem parecida com a do filme O Ébrio, e retratada na canção de mesmo nome, cantada por Vicente Celestino. Era formado em filosofia, aluno dos mais aplicados. Começou a aconselhar Heleno, motivando-o a se apresentar no emprego publicado no jornal da cidade, usando a experiência adquirida em palestras motivacionais, e como professor na área. Tinha por volta de 60 anos. Heleno se afeiçoou a Antenor. Ao se despedir, fez questão de falar para ele que gostaria de encontrá-lo mais vezes, ao que Antenor aquiesceu. No dia seguinte, foi confiante se apresentar como candidato ao emprego, e se comportando de acordo com as lições de Antenor, foi logo admitido. Chegou em casa todo radiante, e de tarde, quando Dona Idalina voltou do serviço o encontrou feliz, com a viola em punho, cantando os principais sucessos da música sertaneja. Contou toda história do Agenor, e suas instruções que lhe valeram muito para conseguir o emprego. Ia procurá-lo, ser apresentado à mãe, e apreciar um prato de vaca atolada que Dona Idalina tão bem sabia fazer. Disse que a fábrica era uma tecelagem famosa, produtora de meias, pijamas e cuecas, conhecida nacionalmente. A mãe ficou surpresa, pois a indústria de seu patrão também produzia esse tipo de roupa. Heleno encontrou-se com Agenor, levando-o à sua casa, no domingo seguinte ao do primeiro encontro. Logo ao ver Dona Idalina, Agenor sentiu algo esquisito.
(CLÉA MAGNANI)
Dona Idalina estava arrumando a mesa quando Heleno chegou com o convidado, e parou, estática com um prato nas mãos, ao ver Agenor lhe sorrindo e estendendo a mão. Aquele homem, quase um maltrapilho, que Heleno disse ter conhecido na praça, não era nem sombra do Agenor que estava ali na sua frente. Calça vincada, camisa branca, sapatos brilhando, cabelos bem cortados e ainda úmidos do banho recente, que trazia a lembrança do sabonete e do creme de barbear, na barba bem feita. Refeita do impacto, ela sorriu, correspondeu ao aperto de mãos, e não pode deixar de observar que Agenor, a olhava de modo estranho. – Hummmm... mãe, esse cheirinho da vaca atolada está virando a esquina! - comentou Heleno. - Aceita um aperitivo Seu Agenor?- perguntou ao convidado.-Oh! Não, não, meu rapaz! Esse aroma delicioso já é o suficiente para despertar qualquer apetite!- cortou rapidamente Agenor que, como participante dos Alcoólicos Anônimos, tinha como norma: Nunca Tomar o Primeiro Gole. À mesa, a conversa variava sobre assuntos triviais, até que Agenor fitando Dona Idalina, perguntou:- A senhora sempre morou aqui em Araraquara? – Ela então contou como viera morar ali, do sacrifício que fizera após a morte do marido, e da felicidade de haver arranjado emprego na casa de um grande industrial da cidade, que a ajudou muito. Agenor parou a garfada que levava à boca, descansou o talher no prato e perguntou: - A senhora era doméstica, Dona Idalina? - Sim senhor, e cozinhava também de segunda a sábado - respondeu ela, estranhando a pergunta – Dona Idalina Pereira ? – perguntou ele - Sim! – respondeu ela estranhando ainda mais – Que mundo pequeno!! – exclamou Agenor – Era na minha casa que a senhora trabalhava! Eu tinha uma indústria de meias e roupas íntimas masculinas, que foi absorvida por uma grande indústria têxtil que começou a cativar meus funcionários . E com a produção diminuída, os clientes também se foram para a indústria maior. Resultado: fali. – contou ele com uma sombra de tristeza nos olhos – Ahh! Meus amigos, a falta de dinheiro acaba com tudo. Até com o amor, fui traído por minha mulher, abandonado pelos meus falsos amigos, saí de casa, e me perdi na bebida. Hoje, depois de me recuperar pelo A.A.minha vida mudou muito. Dou aulas de Filosofia na Faculdade de Araraquara. - concluiu.- Mas me diga uma coisa, Seu Agenor: Por que é que o Senhor hoje, já recuperado, ainda fica naquela praça, todo esmulambado, falando com desconhecidos? - perguntou Heleno surpreso. - Meu rapaz, a vida me ensinou que certos amigos são amigos do nosso dinheiro; quando o perdemos os perdemos também. Aprendi mais: não é por estarmos numa situação difícil, que devemos nos enfiar ainda mais fundo nas misérias do alcoolismo, que muitos nos oferecem “para esquecer as mágoas”, mas que na verdade querem e nos ver rastejando como eles, totalmente dominados pelo vício. Sou Professor de Filosofia, e percebi que quem está em má situação foge de conselhos de Profissionais, então, me visto como alguém que também está em situação semelhante, ou aparenta desespero ou desânimo, sento-me ao seu lado, puxo conversa e eles ao me verem “naquele estado”, mudam de atitude. E por falar nisso: Tenho um trabalho para você, Heleno. E, Dona Idalina, a senhora não quer voltar a ser minha cozinheira outra vez ? Esta vaca atolada está uma delícia!!!