Metamorfose - (drama/romance de formação)
Sinopse: Devido às dificuldades vividas no Brasil, a família Himura se vê diante de uma proposta irrecusável; trabalhar como operários bem remunerados no Japão, já que devido ao rápido crescimento das suas indústrias, o país passou a necessitar até de mão de obra externa. Então, apesar de reticentes no início, logo os Himuras arrumaram as bagagens e foram se aventurar no outro lado do continente. Mas, Japão não é Brasil. Isto é certo! E a partir daí, já instalados, com o gordo salário entrando na data correta, transcorre a estória das metamorfoses que, no início caracteriza-se apenas por mudanças imperceptíveis sobre o eixo familiar, mas com o passar dos anos, transforma-os completamente. Se antes as divergências se resumiam em questões como; contas mensais a se pagar, a educação dos filhos, e outras tais simplicidades, agora se alterou o foco das discussões, beirando ao esfacelamento familiar. Será que realmente valeu a pena?
Metamorfose
A primeira vez que Eduardo Himura apeou no aeroporto de Narita, no Japão, ele ficou impressionado com algo que ele não estava acostumado a ver no Brasil.
“Caralho, que tanto de japonês!”.
Era o que ele sussurrou vislumbrado, lembrando-se das inúmeras vezes que quando criança, ele ouvia alguém na rua chamar a atenção de outro, enquanto o desconhecido apontava o dedo em sua direção, caçoando da sua cara achatada, dos seus olhos riscados, rasgados como diziam, e dos cabelos tão lisos e pretos, como jabuticaba quando chegou a hora de ser colhida. Mas estranhamente naquele aeroporto apinhado de gente parecida, apesar dos costumes nipônicos que seus pais já praticavam em casa, como as palavras ditas em nihongo, as comidas saborosas compostas pelos onigiris, pelos sushis, os sashimis, as sopas de missô acebolado, os doces de arroz recheados com feijão adocicados, — sem contar as músicas japonesas ouvidas desde manhã até o varar da madrugada pela avó doente em casa, — apesar de tudo isso; ali, pela primeira vez no Japão, Eduardo reviveu sentimentos nostálgicos da sua infância no Brasil: sentindo-se um peixe fora d'água, ou mesmo um estranho no ninho, percebendo-se sem lugar, no único lugar que imaginou ser isso possível: no país de origem.
“Ora bolas, eu não sou japonês, eu sou é brasileiro!”.
Ele repetiu esta frase por seguidas vezes pra si, enquanto fitava japoneses vistosos metidos em ternos engravatados, pretos ou acinzentados, e as japonesas elegantes, vestindo trajes finos, coloridos, com olhares altivos por onde passavam.
Também havia pessoas mais velhas, sozinhas no lento caminhar, segurando um copo de café ou chá na mão, enquanto contemplavam o horizonte das pessoas no saguão do aeroporto. Já os mais jovens passavam em bandos apressados, com o sorriso solto, escancarando a brancura dos dentes em gargalhadas frenéticas, no gesticular agitado, fluindo uma energia vibrante enquanto passeavam pelas lojas. Apesar das diferenças não tão sutis, ou seja, se cadenciando os passos ou descompassando em trotadas apressadas, parecia que todas elas emergiam uma aura diferente, mais iluminada, segura de si, possivelmente imantada naquele país do 1° mundo.
“Respire e inspire...”.
Impactado com tanta informação ao redor, o jovem Eduardo reorganizou seus pensamentos, primeiro buscando auxilio numa respiração mais longa e profunda. E quando se tornou impossível não se perder nas cores, nas falas, nas letras japonesas estampadas por todos os lados, ele buscou recordar os principais motivos que trouxeram ele e sua família para vierem trabalhar no outro lado do mundo. Nisso, a voz do pai começou a ecoar na sua mente, principalmente:
“Filho, estamos viajando para o Japão para juntarmos dinheiro. Só pra isso! Já te disse que um homem sem patrimônio não vale nada?!”.
Eram apenas algumas das falas já gravadas no inconsciente dos filhos, um tipo de herança psicológica deixada latejando em suas almas, mas que foram incrustadas desde a infância, e muito mais intensificadas na véspera da partida.
Quando o jovem Eduardo recordava dos tios, primos e dos amigos da escola, sofria logo saudades eternas da sua vida no Brasil. Sentia saudades de todos, principalmente de uma garota chamada Lyz, que a deixara com promessas de um retorno rápido, ainda sentindo o gosto do primeiro e único beijo que deram após terem descido de um coletivo superlotado. Ela disse antes do avião partir:
“Aproveite a oportunidade, Eduardo. Afinal, pensa comigo, não é todo dia que alguém muda de continente, né?!”.
Depois ele lia e relia as seguidas cartas dos amigos da escola, 1° ano para ser mais exato, e que com o passar dos meses, — não mais movidas pelo fervor da recente despedida — chegavam mais intercaladas, ocupando cada vez menos espaço na caixa dos correios.
No entanto, sua maior companhia sempre foi a de Emily Himura, a irmã dois anos mais nova. Libriana, calma e sensata, às vezes a pequena ficava por horas a fio alugando os ouvidos do irmão, seja com temas relevantes que ouvira na escola ou mesmo com algo interessante que tinha lido em algum livro que julgara fascinante, pego na: Três Poderes, a biblioteca municipal localizada apenas a dois quarteirões de casa. Com a carinha de anjo, gestos de menina princesa, Eduardo a amava profundamente. Apesar da pouca idade, Emily era o porto seguro da sua alma, um consolo sincero quando as tormentas e as tempestades juvenis caíam sobre a cabeça do irmão, assolando sua alma pudica.
E, enquanto a família atravessava o saguão do aeroporto, à procura do portão de saída onde de frente já esperava o táxi, o pai lançou um comentário:
“Tóquio é uma cidade interessante. Novas experiências e novos aprendizados nos aguardam neste país”.
E enquanto o táxi percorria as ruas e avenidas de Tóquio, o pai começou a falar sozinho enquanto olhava para os letreiros luminosos estampados no alto dos edifícios comerciais, ao ver o tráfego intenso, mas organizado dos carros nas ruas, e para as pessoas que cruzavam as avenidas mais movimentadas, formando o que parecia ser um imenso formigueiro de orientais no centro da principal cidade do Japão.
Assim que eles desceram do táxi, — com os estômagos roncando saudosos da última refeição feita no voo — deram de cara com o pequeno restaurante japonês que procuravam. Rámen; era o que estava escrito na vidraça enfumaçada por causa dos vapores que emanavam da cozinha instalada despudoramente de frente às mesas, mas que criava uma aura amiga e ao mesmo tempo nostálgica, relembrando os antigos filmes japoneses que a falecida avó tanto assistia na sala.
Abe era o nipo-brasileiro que os aguardava de frente ao restaurante. Além de auxiliar em questões de trabalho, ou do shigoto — como todos o ouviram repetir por seguidas vezes em seus transes de trocar a língua portuguesa pela língua japonesa — também era ele que transportava as famílias do aeroporto até as futuras instalações. Enquanto a família matava a fome, Abe disse com ar de vantagem:
“Vocês ficarão instalados na província de Saitama Ken, numa cidade chamada Toda-Shi. Agora lhes digo o melhor: o apartamento está localizado bem de frente à prefeitura. Tem farmácia, supermercado e ponto de ônibus pertinho. E apenas a três quilômetros da FAST FOOD, a fábrica que irão trabalhar!”
Com a família Himura já saciada dentro do seu carro, Abe pegou a rodovia e, depois de consultar o mapa no celular, foi dirigindo até o distrito de Toda-Shi. Enquanto isso, ele retirou um pequeno barbeador elétrico, — sufocado entre as bagunças que recheavam o interior do porta luva — e começou a se barbear através do espelho retrovisor. Ele disse com ar seguro, adquirido ao longo de pelo menos uns vinte anos morando no Japão:
“Preciso lhes passar uma orientação importante: aqui no Japão, imagem é tudo! Cuidem muito da aparência enquanto estiverem aqui. Aliás, se possível, vistam a melhor roupa quando forem se apresentar na empresa amanhã de manhã”.
Depois de uns quarenta minutos de uma viagem bem tranquila, o automóvel de Abe parou de frente a um condomínio. Yellow Green Kondominiamu (Condomínio Verde Amarelo) era o nome que estava escrito na placa de metal bem da entrada do pequeno conjunto de apartamentos, ou de apãatos. — como dali pra frente seria comum de se ouvir entre os estrangeiros — Foi a caçula que se arriscou a dizer o que pensou tão logo viu a pequena porta com o grande número 01, estampado na madeira.
“Que minúsculo! Será que vai caber todo mundo aí?”.
Foi daí que todos se recordaram da propriedade que tinham no Brasil; uma construção imensa em tamanho e quantidade de cômodos, com diversas vagas de garagens, sem contar o lindo jardim florido enaltecendo o lugar com pelo menos uns seiscentos metros quadrados de área.
Abe que se antecipou a responder a pergunta de Emily, antes de entregá-los a chave do apartamento e dar a partida no carro:
“Claro que sim! Cabe todos aí! Na verdade, este apartamento já acomodou famílias até maiores...”.
Ao lado da porta, uma lavadora empoeirada despencava sinais de muitos tempos de uso. Acima, um pequeno varal. E ao redor, sem contar o assovio cortante do vento, só havia o silêncio, pois nenhum dos inquilinos — tanto do térreo, como também do segundo andar — arriscou a despontar o rosto além das portas. Bastante reticentes no início, a família Himura permaneceu com o semblante tímido, mas prestando atenção em cada detalhe daquele lugar que seria — por um período ainda não definido pelo pai — sua futura residência.
Após abrirem a porta, a primeira coisa que a família viu foi um sapateiro instalado no canto da parede, e suspenso sobre ele, um chaveiro de metal robusto que, no entanto já não emitia tanto brilho assim por conta da oxidação gerada de mãos frequentemente banhadas de suor. Desgastados também estavam os nichos do sapateiro, com lascas revelando o fundo original, coberto grosseiramente com tinta branca. Enquanto um por um retirava e posicionava os sapatos um ao lado do outro, recordaram-se do que Abe tinha dito, enquanto os trazia até a futura residência.
“Tirar os sapatos para entrar em casa é o costume higiênico mais importante do Japão”.
Diferentemente dos variados tipos de piso que existem no Brasil, o tatami japonês é feito de palha de arroz prensada, revestida com esteira de junco e faixa lateral. Silencioso aos passos e prazeroso pra ser pisado, enquanto cada um caminhava sobre ele pela primeira vez, mantinham o olhar sequestrado nos detalhes dos móveis já estrategicamente organizados e posicionados para que o pequeno ambiente pudesse ganhar maior espaço interior. A respiração da família, — antes frenética e até audível — de repente ficou ritmada nas descobertas de cada um. Mas dentro de seus corações, certas certezas começaram a pipocar sem parar, e a seguir, momentos após, todas as expressões antes pálidas, se tingiram com as cores da empolgação. E maior prova disso era que à medida que desbravavam cada cômodo, os abraços ficavam mais apertados, e os olhares que antes eram desviados, agora eram trocados com maior frequência. Infelizmente a aura positivista durou pouco tempo. Pois logo a insegurança de outrora, — antes suspensa nos ventos da empolgação — tornaram a assentar velhas roupagens. Foi à mãe quem se arriscou a quebrar o silêncio:
“Se ficarmos juntos, venceremos!”.
Aquela foi a primeira vez que eles ouviram a voz afável e serena de Sayuri Himura, a lúcida protetora da família. Hideki, o pai, já tinha se despedido do motorista, quando pôde ouvir lá da calçada, às gargalhadas que eram timbradas naquele ar gelado, tão característico no Japão ao cair da noite. Em uníssono, os três soltavam risadas audíveis e, de certa forma até exageradas, enquanto expressavam comportamentos bem diferentes das expressões antes contidas, ou vindas de alguém que até então não havia pisado no chão onde estabeleceria novas raízes.
“A privada é só um buraco mamãe!”.
Foi Eduardo que disse isso após abrir a porta do banheiro e admirar-se com uma privada exótica, cravada no piso. Nas bordas da cerâmica estavam desenhados dois encaixes para os pés se equilibrarem. Depois Emily foi e abriu a outra porta. E desta vez foi à vez dela se surpreender...
“Papai, olha que caixote engraçado! Isso aí é o tal do ofurô?!”.
...e que de certa forma, sem que ainda se dessem conta, já argumentava no inconsciente de cada um, qual era o real significado naquela empreitada louca de mudarem para o outro lado do mundo.
***
Na manhã do terceiro dia os quatro vestiram o uniforme de trabalho que havia sido deixado por Abe no dia anterior. O uniforme — confeccionado em tecido brim branco — era composto por uma calça, pela camisa de mangas compridas, sapatos bico de ferro e um boné esquisito que estampava três pontas acima logo acima da aba.
“Estamos parecendo enfermeiros!”.
Eduardo não se conteve de tanto rir, primeiro do pai, depois da mãe e da irmã que já se sentiam como marinheiros de primeira viagem. Depois foi a fez de se enveloparem com o blusão contra o frio, confeccionado em cetim azul, e forrado com lã no interior. E para finalizar, — conforme orientou Abe — cachecóis começaram a dar voltas duplas e triplas ao redor de cada pescoço.
A cena no interior do apartamento, — à que antecipava a saída para trabalharem — era a seguinte: eles esfregavam as mãos, depois baforavam ar sobre elas, e a seguir as envelopava com grossas luvas que iria os proteger contra o frio implacável gerado na batida do vento sobre os dedos cerrados no guidom da bicicleta. A princípio o que mais demorava era calçar os sapatos duros. E para irem se acostumando ao formato do material do calçado, nos primeiros dias era muito comum vê-los saltitando de um lado para o outro, expressando caretas engraçadas enquanto buscavam apoio nas paredes.
“Algum dia alguém aqui imaginou que enfrentaríamos um frio como esse?”.
Hideki disse isso segundos antes dele mesmo trancar a porta do apartamento, e depois ficar contemplando as construções arcaicas que haviam na vizinhança ao redor. Nisso a mulher perguntou apreensiva:
“Você pegou o mapa que o Abe nos deu, né?”.
“Claro! Ele está bem aqui na minha mochila”.
“Ah... Não podemos correr o risco de nos perder e... Chegarmos atrasados no primeiro dia de trabalho...”.
“Fique tranquila. Esqueceu que sou fluente em nihongo?”. (língua japonesa)
A seguir seguiram-se palavras de conforto mútuo. Primeiro dos pais para os filhos, e depois dos filhos para os pais. E após alguns tapinhas nas costas dos filhos, um por um começou a adentrar a densidade úmida que ainda impregnava os ares, acumulada no varar da última madrugada.
Hideki seguiu pedalando na frente. Mantinha-se atencioso no movimento dos carros, das motos, a todo instante se desviando de obstáculos, de pessoas, até de crianças com seus pais a caminho da escola.
E os familiares que vinham atrás, — como Hideki também — com uma mochila nas costas e a cestinha abarrotada com petiscos diversos à serem consumidos ao longo do primeiro dia.
***
A mudança brusca do fuso horário, — das noites no Brasil virando dias no Japão, e vice versa — a princípio afligiu a família Himura com tremuras musculares que ficaram cada vez mais percebidas no revirar ensandecido do corpo sobre o leito amarrotado. A primeira semana no país foi um inferno de dar dó: para o corpo, para a alma e para os pensamentos. Por exemplo; quando a luz do sol despontava no horizonte, clareando paulatinamente a manhã com seus feixes de luminosidade, a boca os sequestrava em bocejos que nunca tinham fim. Mas quando a noite caia e as trevas engoliam os últimos resquícios da luminosidade natural que restara de uma tarde ensolarada, o espírito ficava desperto, vibrava sem pausas, inundando-os de uma energia assassina que a princípio desintegrava o sono, e em seguida assoberbava-os de pensamentos diversos, ainda que estivessem completamente exaustos da agitação do dia.
E o frio era muito rigoroso. Nunca haviam sido expostos a uma temperatura tão baixa como aquela. E em noites ainda mais frias, os cobertores duplicavam pela madrugada adentro, enquanto dois ou três aquecedores ligados na potência ao máximo irradiavam luzes vermelhas que aqueciam vagarosamente o ambiente. Em meio às cobertas, Emily perguntou ao irmão:
“Em que sessão está trabalhando, Eduardo? Não te vi no refeitório...”.
“Não haviam mais vagas de trabalho lá na fábrica. Daí eles me realocaram para uma pequena empresa que presta serviço para a Fast Food”.
“Prestadora de serviço?!”.
“Sim. Mas o pior é que o serviço lá é pesado. Fico o dia inteiro empilhando panelas de ferro, que pesam mais ou menos uns 7 a 8 quilos, depois de esvaziá-las com o arroz...”.
“Nossa maninho!”.
“Pensa num lugar sujo, Emily! Sem contar os velhos mal humorados, e sem educação que trabalham lá. E quando não entendo o que eles me dizem, os velhos ficam gesticulando pra mim com a fala alterada, às vezes esbravejando palavras em japonês, mesmo sabendo que ainda não aprendi a falar essa língua idiota!”.
Por longos minutos, a caçula ficou ouvindo o irmão. E depois de beijá-lo na bochecha, ela tentou consolá-lo:
“Aguente mais um pouco maninho. Tenho certeza que logo, logo surgirá uma oportunidade lá na Fast Food. Deus há de me ouvir! Hoje mesmo pedirei ao papai para falar com o Abe”.
Assim que ficou mais tranquilo, Eduardo retribuiu a pergunta:
“E vocês?! Estão próximos um do outro? O que o papai e a mamãe achou do serviço?”.
“Eles estão adorando! Mas eu também não tenho do que reclamar...”.
Logo o ciúme despontou no olhar do irmão. Mas foi combatido diligentemente por Emily que, muito atenta ao irmão, triplicou os beijos e os abraços. Depois ela tornou a repetir, como em uma oração:
“Deus há de me ouvir...”.
Infelizmente meses se passaram e nada mudou. Nenhuma oportunidade de trabalho surgiu na Fast Food nem em outra empresa. De forma que a rotina da família Himura permaneceu a mesma, ou seja, de segunda a sábado, antes que o sol raiasse, os quatro pedalavam até o cruzamento de uma avenida chamada Fujiwara com outra chamada Koyama, onde o filho mais velho se apartava da família, seguindo por outro caminho.
Eduardo prosseguia pedalando por uma rua apertada que serpenteava abaixo dos trilhos suspensos do “Shikansen”, e que minutos após logo findava na frente do galpão onde trabalhava. Ele chegava sempre as 07h45min. Em ponto. Mas lá do estacionamento — enquanto guardava sua bicicleta — já era possível ouvir os resmungos dos outros funcionários.
“Osoi!...”. (Lerdo!)
No inicio até que o jovem Eduardo se segurou, mas depois de um tempo, ou melhor, depois que ele descobriu que a palavra osoi significava realmente o que os três velhos queria dizer, ele não deixou mais barato e passou a revidá-los:
“Vão à puta que pariu!”.
Por um bom tempo o sangue ferveu exatamente assim, antes de circular grosso nas veias. Bem que o jovem Eduardo tentava se segurar, mas diante de tantas implicâncias diversas, e também controversas, replicar acabou virando seu inferno de rotina. Depois de ouvir a ofensa do dia, ele retrucava com alguma palavra recentemente aprendida no dicionário, e depois ficava mirando o brilho desvanecido dos olhos assustados, principalmente do velho Koiti, que logo passaram a se esconder por detrás das grossas lentes fundo de garrafa.
Comparado com outras prestadoras da rede Fast Food, o Bijõogi basicamente era um chiqueiro. Afinal, como eram poucas as inspeções vindas da matriz, por ali os parâmetros de limpeza ficavam meio que nas coxas mesmo: o piso encardido acumulando o lodo de anos, as paredes sebosas de humilhar mendigo velho, e o maquinário de trabalho com camadas de sujeira impregnada, principalmente nas entranhas onde o escovão não conseguia esfregar o detergente.
Mas ninguém ligava. Contanto que a quantidade do arroz cozido fosse entregue antes do badalar das 18h00min, estava tudo certo! Entretanto, debaixo das telhas de zinco bem deterioradas, Koiti, Ishikawa e a Sra. Kaori, reinavam em absoluto.
Koiti, — um idoso na casa dos setenta e oito anos de idade, — era o funcionário mais antigo ali: responsável pelo recebimento dos pedidos da matriz; era Koiti que gerenciava os sacos de arroz no depósito, às vezes esquecendo-os com a boca aberta para a alegria dos ratos. Então de manhãzinha, após amarrar um avental encardido que sublinhava ainda mais a saliência da barriga acostumada a se entupir de saquê às tardes, o velho ia ao depósito e depois vinha de lá trotando com um ou dois sacos de arroz às costas. Forte pra burro! Parecia que a cronologia do tempo não infligia nele qualquer tipo de desgaste: nem no corpo, nem nos ossos e muito menos na “aura enérgica” sempre disposta a alcançar as metas do dia.
Já Ishikawa, — outro idoso na casa dos sessenta e oito anos de idade — era o primeiro na linha de produção. Branco igual os flocos de neve quando caem do céu refletindo os feixes de luzes que insistiram atravessar as nuvens, era ele o responsável pela temperatura correta do fogaréu que percorria bem abaixo de toda a extensão da linha de correntes de metal.
Com os óculos dourados sufocando seu nariz avermelhado, Ishikawa enchia as panelas com a água e o grãos, e à medida que cada uma passava sobre o fogo que chamuscava ao longo dos trilhos, o serviço do velho era ir despejando os grânulos do sal. Depois ficava remexendo a colher de madeira, com ela suspensa entre o indicador e o polegar cerrados, revirando a água no interior da panela até que o pó branco diluísse completamente na água.
A rota era bem programada. Panela por panela, — com a cabeça de Ishikawa indo e vindo, acompanhando cada uma delas, — nada passava despercebido sob seus olhos atentos. A não ser quando sua bexiga implorava por um rápido abrir de braguilha, e, a urina que era jorrada no chão aos seus pés, acabava aglomerada de insetos que, sobrevoando em voos mais altos, logo caiam cozidos em meio ao vapor, virando sem querer condimentos não industrializados.
Mas quando o motor do maquinário denunciava algum defeito, Ishikawa era o único entre os três que se aventurava em consertá-la: desmontando as peças e por seguidas vezes tornando a reprogramar os dispositivos eletrônicos abarrotados na caixinha amarela lateral ao trilho. Sempre assim; com as mãos transbordando fusíveis de amperagens diversas, e com um punhado de ferramentas socadas na bolsinha a tiracolo, o velho ficava trotando de um lado e pro outro, enquanto seus braços iam e vinham combinando com a expressão preocupada de seu rosto branco todo inundado de graxa. No entanto, Ishikawa não aceitava que ninguém, além dele mesmo, ousasse por as mãos no seu amor, na sua musa, como frequentemente se gabava, ora esboçando sorrisos, outrora emitindo gargalhadas frenéticas, e às vezes, — quando os nervos saltitavam na sua pele encardida — ele emitia berros estarrecedores que ecoavam por todo o galpão, só dissolvido momentos após no silêncio hermético e abafado que habitava o lugar. Quando ele estava assim, os resmungos da Sra. Kaori, — a única mulher — eram ouvidos por todos os lados. Principalmente:
“Hoje o Ishikawa tá que tá, né?!”
A verdade era que a velha Kaori era uma baixinha troncuda com braços e pernas super velozes, com sessenta anos de idade comprovados nas rugas que se avolumavam na face sempre cerrada. Também era mandona por natureza, uma beata de poucas palavras, mas quando ela tinha que obedecer aos outros dois velhos; fazia bico e sambava pra todo lado, arfando tempestades enquanto ia derramando punições nos protestos carrancudos que sublinhavam ainda mais aquele olhar expressivo, matador, que mal aparecia sob a aba do boné sombreando parte do seu rosto como se fosse véu de noiva abandonada.
Ao fim de um longo dia de trabalho podia se ouvir de Eduardo...
“Oh trampo de merda!”.
... e ele, já com as mãos na lombar, arqueando o corpo por vezes seguidas enquanto sofria as dores causadas por causa do peso exagerado das panelas que era obrigado a empilhar. Mas à medida que à tarde do dia alcançava a penumbra da mesma noite, ele se acalmava por vez, e o coração, — até então todo moído pelas tarefas do dia, logo — era inundado por sentimentos nostálgicos, principalmente relacionados à vida no Brasil.
“Eduardo San, okaeri!”. (Senhor Eduardo, bem vindo ao lar!).
Com o tempo, esta frase dita em japonês foi o que se tornou mais comum de se ouvir assim que alguém chegava à casa da família Himura. Principalmente de Sayuri que, ora e outra, a conta gotas, treinava o dialeto que praticava com o marido, e também com as amigas de igual sessão. Mas com as risadas, com as histórias sendo compartilhadas entre eles, era impossível evitar: logo uma pontinha de ciúmes brotava do peito de Eduardo. Enquanto Sayuri dizia coisas como:
“Como você emagreceu filho! Precisa se alimentar melhor...!”.
“Está acontecendo alguma coisa lá no seu trabalho? Quer compartilhar algo com sua mãe?”.
“Por que você está agindo assim? A gente não pode falar nada que logo você fica nervoso? O que fizemos para sermos tratados dessa forma?”.
E o filho permanecia envolto na mesma película de desinteresse e por vezes, de excessivo mau humor crônico:
“Já te falei que não quero comer!”.
“Putz! Não enche o meu saco!”.
“Droga! Vocês podiam me dar um pouco de paz!”.
Felizmente aos finais de semana, o ambiente familiar recebia alguns toques de um colorido mais vivo e alegre, e que ficavam notórios nos sorrisos espontâneos que pipocavam para todos os lados, principalmente quando ele e a irmã decidiam fazer alguma coisa juntos. Afinal, com Emily era assim; num piscar de olhos; sentimentos ruins logo abriam passagem para conversas interessantes, deixando Eduardo mais tranquilo para confidenciar tudo àquilo que um irmão carente poderia compartilhar com uma irmã amorosa:
“Emily, você acredita que eu já fiquei quase uma hora sentado naquelas cadeiras de massagens que estão à venda lá no shopping Jusco?”.
“Ah, então é por isso que você tem chegado tão tarde em casa, né?”.
“É sim!”.
“É caro, maninho? Ficar naquelas cadeiras?”.
“Imagina! Fico totalmente de graça! Elas ficam expostas para degustação dos clientes”.
“Promete-me que um dia destes você me leva lá? Para experimentá-las? Estou com uma dor bem aqui...”.
“Claro que sim! Quando quiser...”.
Depois os irmãos riam tolamente um com o que dizia o outro, conversando até altas horas, agasalhados enquanto bebericavam qualquer coisa quente na calçada de frente ao apartamento. Mas neste dia, Emily teve uma idéia:
“Uai, maninho, o seu salário já foi depositado na conta. O que acha da gente dar uma passada lá no shopping? Quem sabe encontramos alguma coisa legal pra você?”.
No entanto, com o passar do tempo, passou a ser muito comum ouvirem as ponderações financeiras oriundas do pai. Tipo:
“Olha, não vão exagerar nas compras, combinado?! Só peguem o que realmente for necessário!”.
“Quem só pensa em gastar, logo fica sem nada...”.
“Muitos sabem como ganhar dinheiro. Mas poucos sabem como gastá-lo. Por isso digo a vocês, poupem o quanto puderem...”.
A mãe nunca interferia no assunto. Já o jovem Eduardo sempre protestava:
“É impressão minha, ou o senhor quer controlar até o meu dinheiro?”.
“Eu estou trabalhando tanto, poxa vida! Também tenho o direito de comprar minhas coisas!”
Mas era Emily que colocava uma pedra no assunto. Ela chamava Eduardo para o canto, e dizia coisas como:
“Por favor, maninho, se esforce para compreendê-lo, nem que seja um pouquinho. Você sabe que o papai perdeu tudo. Ainda não se conformou com isso...”.
“Na cabeça do papai, viemos para o Japão só para reconstruir o que perdemos no Brasil. Mas vamos conversando com ele, ok? Com o tempo ele compreenderá que também temos necessidades...”.
“Eu sei que às vezes é difícil aceitar tudo o que ele diz, maninho, mas ele é o nosso pai e devemos respeitá-lo, não é?”.
“Eu te garanto que as coisas aqui em casa logo vão melhorar. Pode confiar em mim?”.
Uma pequena amostra do tanto que a irmã amadurecera — apesar de ser tão novinha — nos últimos anos no Brasil: com várias noites de sono perdidas por causa das contas de casa que nunca fechavam, sem falar nas incontáveis desculpas esfarrapadas que ouvia o pai ou mesmo a mãe dizer a qualquer credor que ligava, com o gancho do telefone já lhe adormecendo a mão.
“Você tá certa, Emily! Agora vá se arrumar que vamos tomar um sorvete bem gostoso no shopping Jusco!”.
“Ôba!”.
Depois que os filhos saíram, Sayuri chamou o marido para conversar.
“Hideki, você falou com o Abe? Sobre outra opção de trabalho?”.
“Falei com ele ontem. Mas acho que você não vai gostar do que ele disse...”.
“Qualquer trabalho serve. Desde que não seja tão pesado como o Bijõogi...”.
“Então... segundo o Abe, neste momento só uma fábrica em Hamamatsu está contratando trabalhadores...”.
“Em Hamamatsu?!”.
“Sim. Foi o que ele disse”.
“De jeito nenhum! Não posso aceitar isso. O Eduardo vai ter de esperar mais um pouco”.
“Mas ele não vive reclamando do Bijõogi? Que o serviço é ruim e coisa e tal? Que não aguenta os outros funcionários?”.
“Sim, mas...”.
“A única opção que o Abe me passou foi essa. Ele também disse que não sabe quando surgirá outra oportunidade. Por outro lado... ele me disse que tem uma vantagem...”.
“Vantagem?! Mas o Eduardo acabou de completar 18 anos! Não tem nenhuma experiência de vida...”.
“Então, o Abe disse que as fábricas de lá pagam melhor... E que o serviço é bem mais tranquilo do que os daqui de Toda-Shi...”.
É fato que, dos vários desafios que a família teve que superar, nenhum deles pôde se comparar ao tremendo vazio que, pouco a pouco começou a esburacar seus corações. Bem que tentaram persuadir Eduardo para que continuasse perto da família, mas o tempo passou e, como não aparecia outra oportunidade de trabalho, o filho mais velho acabou comprando a idéia de viajar pra longe para trabalhar.
“Avisa o senhor Abe que vou para Hamamatsu”.
Continua...
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