Crônica do fim: A mulher que nasceu para virar literatura. Parte 9. Crime e Castigo. Tomo III

"A primeira lei que a natureza me impõe é gozar, às custas de quem quer que seja" (Marquês de Sade)

A prejudicada perfusão de oxigênio, garantida pelo abraço apertado da corda em meu pescoço, transiu-me das sugestões oníricas que podemos experimentar quando somos desafiados assim. O estrangulamento investiu-me de uma coragem sem solo, de um impávido querer que flanava sobre um terreno fluido. Só assim para expurgar o terror que experimentei pela excitação física e espiritual aos abusos que me vitimaram nas mãos decididas de Amanda! Mulher magma em temperatura!

Enquanto me chupava com a maestria irrepreensível de quem tinha uma physis para, puncionava, o suficiente para não dilacerar, mas o bastante para invocar dor terrível, a pele rugosa do meu saco escrotal, com o alicate que ali estava ao chegarmos. Não contente, o apertava, qual torniquete, a medida que intensificava a mamada magistral e os beliscões de aço!

A mistura que se materializou entre dor e prazer empurrou-me para o gozo célere, animalesco como estava sendo sugerido o que se avizinhava. Adverti-a que lhe explodiria a boca em sêmem.

Amanda! Mulher cujos predicados rastejam em lhe fazer justiça! Amanda! A loucura que a minha edificou altar para venerar! Ao escutar minha sentença, foi atravessada por um aríete de nuanças que a fez outra. Uma que eviscerou as fatídicas certezas que se escondem no porão de nossa'lma, embrutecida pelo vermelho dos mais ultrajantes pendores!

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Quando meus sentidos encontraram as vicinais da lucidez, uma vez que a via principal estava entorpecida por insondável emoção, fui notando, num fluxo intermitente de cores e sabores, um espectro altivo, de iridiscente esplendor, a fustigar toda minha empobrecida visão, projetado num dos cantos do quarto. Forcei os olhos em direção daquilo que seria seu rosto, e divisei uma beleza familiar. Cabelos longos, com um verniz de dourado que não se entregava vulgar, emolduravam o crânio desenhado para atender proporções vitruvianas. Imerso nos detalhes que me iam descortinando a ignorância, fui, de súbito, abalroado pelo estrepitoso gorgolejar de um refluxo cáustico. Cuspi, com fúria tirânica, um Leviatã ferruginoso que, na carona, saiu com vômito indomável!

A figura deitou-se a rir! Um riso que rasgou-me a alma! Com as garras inclementes do conhecido!! Aquela risada, embora distorcida por um destes espíritos demoníacos que povoam a imaginação fértil dos crédulos mais doutos, era a que me atropelou em amor!!! Meu Deus! Em que paraíso perdido fui me meter?!

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Sei que admostei vocês a suspenderem suas crenças e óbices morais, há alguns parágrafos, por nesgas de instantes. Pois, cria eu, criatura envolta em ridículas previsões, que tudo havia ocorrido consoante insultos notórios a valores que fundamentam nossa neófita civilização.

Mas, como somos obrigados pelas circunstâncias a usar o "mas" em função da sua imperativa existência na construção da realidade, fui obliterado de minhas faculdades, as que se fazem mister para quesitos onde o julgamento urge amparar-se nos fatos.

Eis, então, onde as águas incontroláveis do destino, que tem no acaso a única exigência para seguir em frente, imiscuíram-se no desenrolar desta trama, urdida por um artesão mui xistoso, aposto.

Sozinhos naquele edifício que se fazia aos pedaços, metido no ermo de um endereço onde este era condição a tudo que lá se queria estabelecer, eu e Amanda, mulher que já exauri o dicionário da poesia que me falta e da prosa que me encara de soslaio, entendemos, num acordo tácito, os únicos sinceros, que havíamos chegado. E, quando se chega, é o fim. Por natureza e burocracia.

Quando o nada acontece, à revelia da contradição sugerida, desfiando a metafísica de Heidegger em sua histórica pergunta, já definidas as diferenças entre o "ser" e o "ente", somos abalroados por uma verdade que só nos escapa porque aprendemos a ingorar que a vida é uma sucessão de contingências aleatórias, para a qual, em desespero, já denunciaram os existencialistas e os absurdistas, tentamos dar vários confortáveis sentidos.

MementoMori
Enviado por MementoMori em 07/08/2021
Reeditado em 07/08/2021
Código do texto: T7315517
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