AMBRÓSIO
- CLÉA MAGNANI
- Ambrósioooooo!.... Vai cuidá das galinha i fechá o galinhêro pros cachôrro du mato num pegá elas dinoite, qui eu vô banhá us minino! - gritou sua mãe, dona Ambrosiana no terreiro da casa no interiorzão de Minas Gerais.- Tá bão mãe! – Respondeu o menino, recolhendo as tralhas com que pescava o jantar no Ribeirão do Juá que fazia a divisa da fazenda do Coronel Jesuíno Pereira onde moravam, com as terras do irmão dele, o Dr. Justino Pereira. Os dois irmãos fazendeiros não se falavam havia uns 20 anos, por causa da herança do Capitão Justiniano Pereira, pai de ambos, que havia deixado em testamento a fazenda para Jesuíno, com todo o gado que ela contivesse, enquanto que para Justino, só deixara as terras improdutivas da fazenda vizinha, como castigo, pelo filho não haver seguido a carreira militar e haver preferido a medicina, que o levaria para a cidade, onde montou seu consultório ortopédico abandonando a fazenda ao Deus dará. A casa que havia nas terras do Dr. Justino, estava muito descuidada, abandonada mesmo. O mato a cercou e os bugios a haviam destelhado em parte. No último temporal uma árvore caiu e derrubou parte da cozinha, que ficou lá desabada a mercê dos ratos do mato, que fizeram ninho no fogão a lenha. Ambrósio, com seus 14 anos, costumava pescar no ribeirão, que tinha muitos lambaris, bagres e até algumas traíras, que ajudavam muito na mistura da janta.- Ambrósioooo! Vê si tem ovo nus ninho das galinha! Anda logo minino lerdo!!!- gritou novamente sua mãe. – Tá bão mãe! Tô indo!! - Sua mãe, estava sempre nervosa... Seu pai, Leôncio, voltava da roça e trazia a lenha que Ambrosina usaria no dia seguinte. Vinha sempre muito cansado e reclamando da vida. Saía cedinho, levava marmita que deixava no sol a manhã toda, para estar quente na hora do almoço, às 10 horas. Amanhã teria peixe frito na marmita. Ambrósio entrou correndo em casa, colocou os peixes na cozinha e saiu para verificar os ninhos e trazer os ovos, quando viu fumaça vindo das bandas das terras do Dr. Justino. Deixou a cesta no chão e foi ver do que se tratava. Atravessou o riacho pela pinguela feita com dois troncos de eucalipto e um corrimãos feito de bambu, subiu correndo a suave colina que demarcava o trajeto do riozinho, e ao contornar o morro, vislumbrou a casa em chamas. As labaredas se alastravam rapidamente pelo mato alto, seco pela geada do inverno. Mas conseguiu ver dois homens correndo pela estradinha que dava na casa. Quem seriam? E quem acreditaria nele? Seria acusado pelo incêndio?
- ALBERTO VASCONCELOS
Entre fascinado pelo fogo e temeroso pelas consequências, Ambrósio voltou para casa correndo bem mais do que quando foi investigar a origem da fumaça que a essa altura já toldava todo o horizonte. Na estradinha encontrou-se com o pai que vinha, com passos lentos, carregando um feixe de lenha bem maior do que o normal. Atropelando as palavras, contou a novidade ao pai que, largando a lenha no chão, correu para o alto da colina. Era preciso fazer um aceiro rapidamente para evitar que o fogo chegasse à sua roça de mandioca. Com extrema destreza no manejo da enxada, cavou uma vala de pouca profundidade no mato seco, fez uma vassoura com o capim, pôs fogo e mandou que Ambrósio fosse espalhando o fogo e em seguida abafando para não deixar que ele ficasse muito alto, ao mesmo tempo que dizia para o filho: - Quando o fogo chegar na cinza ele vai se apagar. Enquanto isso, na cozinha da casa, o gato Bodega, sentiu o cheiro do pescado novo largado sobre a mesa e aproveitou a oportunidade para servir-se até a chegada de dona Ambrosina que, debaixo de vassouradas, interrompeu o lauto jantar. A essa altura dos acontecimentos ela já sentira o cheiro forte da queimada e mandou que os pequenos ficassem sentados na varanda com a recomendação para não arredarem os pés até que ela mandasse. A brisa forte do início da noite açoitava as labaredas cada vez mais altas, cada vez mais próximas. Dona Ambrosina, armada com dois baldes, foi até o ribeirão apanhar água para molhar a palha da cobertura da casa que, antiga e muito seca, poderia pegar fogo com todas aquelas fuligens incandescentes trazidas pelo vento. Tão rápida quanto o fogo, a notícia do incêndio se espalhou pela comunidade e várias pessoas vieram para a casa de Sô Leôncio que era local privilegiado para apreciar o estrago que o fogo estava fazendo. Muitos se prontificaram a colaborar no aceiro para melhor proteção do roçado e outros na coleta de água para molhar a cobertura da casa. Como que uma casa abandonada assim pode pegar fogo? Quem viu começar o incêndio? Eram perguntas que Ambrósio tinha vontade de responder, mas ao mesmo tempo tinha receio que o malfeito fosse acrescentado aos muitos de sua verdadeira autoria.
- ARISTEU FATAL
Na região, como já dito, a notícia do incêndio corria solta. Na residência do Coronel Jesuíno, o assunto estava em evidência pois, ali estava o centro de toda desconfiança do autor do fogaréu. E, era normal dada a incompatibilidade dos dois irmãos, já que não era a primeira vez em que houve questionamentos, brigas, seja por motivo de limites das terras, seja por invasões de modo bilateral, enfim, não havia a tão desejada paz entre eles. Somando-se a tudo isso, a presença de dois de seus capangas, na hora em que Ambrósio viu o incêndio começando, era quase certeza da presença da mão do Coronel, não havia dúvida. Jango e Biriba, como eram conhecidos os homens do Coronel, haviam ido até o Ribeirão do Juá, a fim de pescar lambaris. Jango era um ex-militar, apenas soldado da Polícia Militar de Minas. Tinha sido expulso da corporação, pela violência com que agia, quando estava em serviço, tendo já um sem número de mortes em seu prontuário. Ficou famoso na região, porque havia desbaratado um grupo tipo “os cangaceiros” do sertão nordestino, que vinha assaltando e tirando o sossego dos vilarejos e pequenas cidades mineiras. Nunca foi processado tendo ido para a reserva em completa liberdade. O Coronel Jesuíno o contratou como uma espécie de guarda-costas. Já Biriba, desde menino vivia na casa do fazendeiro, sendo tido por todos como um filho bastardo do patrão. E, cá pra nós, era mesmo, nos tempos em que agarrava a mulata Ritinha. Muito esperto, Biriba vivia aprontando mil e umas com os empregados da casa; nas festas juninas tradicionais, sendo tempo delas, Santo Antônio, São João e São Pedro, era o único que conseguia subir no pau-de-sebo, pular fogueira. Gostava de soltar balões! Ambrósio, quando foi ver a fumaça e viu o incêndio, e depois que encontrou o pai, disse ter visto as duas pessoas, mas não conseguiu dizer quem eram eles, por causa da fumaça. Jurou não ter sido o autor. O pai, Sô Leôncio, deu uma olhada de lado, como que duvidasse de seu filho. Dona Ambrosina conseguiu molhar a cobertura da casa, livrando-a de qualquer perigo. O Dr. Justino, sabendo de todo o ocorrido, tendo certeza de que a coisa tinha a ver com seu irmão, sabendo do estado em que se encontrava a casa de sua fazenda, não procurou encompridar o assunto. Achava até bom que ela fosse destruída totalmente, assim não teria que se incomodar em cuidar dela. E foi o que aconteceu, a casa estava no chão, não dava para se aproveitar nada. Somente sobraram algumas pedras sobre pedras.
- CLÉA MAGNANI
Comentando com Neco Ribeiro, seu cliente Dr. Justino disse que certamente os dois homens que o filho de Sô Leôncio vira, eram os capangas de Jesuíno. Cidade pequena, onde as notícias voam como folhas secas ao vento, e as palavras do médico chegaram aos ouvidos de Jango, que quis saber quem o acusava. Conversa vai, conversa vem, Neco Ribeiro falou que Ambrósio, o menino do administrador da fazenda do Coronel Jesuíno afirmara com todas as letras que ele havia visto Jango e mais um outro, saírem correndo da cena do crime. O instinto assassino do capanga tomou seus sentidos. Rangendo os dentes Jango jurou que “aquilo não iria ficar assim! ” Que aquele moleque safado não iria prejudicar seu nome! E fez outras ameaças e ofensas contra o garoto. O tempo passou, as aulas da única escola da região começaram e Ambrósio estudava depois do meio-dia. Caminhava três quilômetros pela beira do Riacho do Juá, depois subia a Serrinha do Cantagalo e chegava na árvore do Pau Arcado, onde ficava o Bar do Raimundo, ali ao lado era a escola. Ambrósio saía da aula às quatro e meia e corria para casa para ajudar sua mãe a cuidar das criações. Naquela tarde, Jango bebia a oitava dose de pinga no Bar, quando alunos saíam da escola. Ao ver Ambrósio, pediu mais uma dose, a engoliu de um gole só e rugiu: - Ahhhh, moleque mardiçoado! Hoje tu mi paga! - e saiu cambaleando atrás do menino, que corria para casa com sua mochila nas costas. Ao chegarem no caminho à beira do Ribeirão do Juá Ambrósio escolheu uma entrada em que a margem do riozinho era mais baixa, tirou do bolso, embrulhados num papel, uma linhada com anzol. Arrancou um pedregulho da terra úmida amarrou na linha como chumbada, cavou um buraquinho de onde saiu uma minhoca, que foi usada como isca, e atirou a linhada na correnteza. Não demorou nada, e uma bela piaba arrastou a linhada rio abaixo. O menino lutava para retirar o peixe da água e não percebeu a presença de Jango, que escondido entre a vegetação fazia a mira de seu revólver em sua cabeça. A bebida embaralhava a visão do bandido, mas ele atirou. Ambrósio havia se abaixado, para pegar o peixe, com a mochila nas costas. A bala entrou pelo fundo da mochila, atravessou seus cadernos e pegou de raspão na cabeça do garoto arrancando uma tira do couro cabeludo. Com os olhos injetados de ódio, Jango se levanta e atira novamente, mas a arma estava descarregada. Ambrósio caído no chão segura o ferimento que sangra muito. Espumando de raiva, Jango se ergue, e tenta correr até onde o menino está, mas sob o efeito da bebida, escorrega na lama e cai de cabeça dentro do Riacho, batendo fortemente a cabeça numa pedra e afunda desmaiado nas águas cristalinas que agora se tingem do sangue que sai de sua cabeça. Ambrósio arranca a camiseta do uniforme, enrola na cabeça e vai para casa. No dia seguinte o corpo de Jango é encontrado ainda dentro d'água...