O HOMEM QUE PERDEU SUA PALAVRA
Tinha nascido, numa pequena aldeia, num lugar remoto, acima dum vale: olhando sempre para a profundeza do rio (mas com a distancia suficiente, como para nunca ter que, com a turbulência das augas, encontrar-se).
Ir ao encontro do rio, foi uma das suas primeiras aventuras, e das suas mas profundas aprendizagens durante a infância (nos verãos, o rio era vida, a alegria e sol de pura calma...)
Quando se fez moço, como muitos outros emigrou. Como muitos outros emigraram antes...
Viveu muitas vidas, naquela etapa tão curta da sua mocidade. E muitos otras naquela etapa, que vai da juventude a maturidade: foi pedreiro, caminheiro, dependente de loja... O salário sempre foi baixo, mas sempre deixava parte das suas despesas, para comprar um livro, um livro após outro... Foi assim, atraves da leitura que começou a entrar em contanto com poetas, músicos, pintores (primeiro com a imaginação, depois como encontros físicos) ... Mais tarde com académicos, médicos, filosofos, engenheiros. Pessoas de saber, humildes e outros altivos e engreídos.
E foi naquela altura sem ele saber, que se tinha tornado, segundo diziam, em um erudito.
Fora um prestigioso editor, que lhe comentou a ideia, de atrever-se a escrever um livro, um tratado sobre sua mesma experiência de vida. Falar dele não havia de ser muito dificil.
Ele simplesmente lhe diz:
- o livro já está escrito, em forma de diário, mas já está escrito...
O editor concordou em ler. Entusiasmou-se com ele, o publicou, e resultou num êxito de vendas...
Nosso homem se fez popular, publicou muitos mais livros, e a falta de dinheiro deixou de ser, como a sobrevivência do dia-a-dia, uma das suas prioridades.
Tudo era um sonho: bom apartamento no centro da cidade, amigos, alguma que outra mulher que o admirava, e sem saber como, durante um par de meses, ou mais, com ele ficava... Mas sempre em temas de relacionamento amoroso, nosso protaginista não sabia por que, tudo era sempre de passagem...
Um dia perguntou a Noélia:
- Tu me amas?
Ela repostou, com certa frialdade:
- Amava ao homem que escrevia tratados tão brilhantes... Agora descobri ao ser, e meu sonho já está realizado...
Noélia, após assim falar, fechou a porta e nunca mais voltou a sua casa.
Mas, ele, com a suposta soledade não se importava: em ela nasciam os seus mais belos relatos, ensaios, pensamentos filosofais, intuições e fragrâncias... Pois, em cada página ao escrever, certos aromas predominavam, certas flores prevaleciam...
Quando ia fazer 52 anos, uma noite, antes da data de todos o parabenizar: ficou como em transe... E já não se moveu dessa posição ate passados dous anos...
Esteve internando num hospital psiquiátrico, durante, todo aquele tempo. Demorando os minutos, horas e dias, olhando para a janela, com muito do seu tempo ocupando em deitar-se na cama, deixar-se aprofundar, num pensamento, que ninguém adivinhava. Assim contemplando, como que somente contempla sua mente dialogando...
Uma certa manha escutou ao médico dizer, no fundo do corredor:
- Ele esta a olhar para os pássaros
Viu, certamente, um pássaro voar... E decidiu segui-lo, já não somente com a mirada.
Esse mesmo dia, ao igual que voluntariamente tinha ingressado, pediu a alta.
Esteve um par de anos viajando.
Finalmente decidiu voltar a casa, a aldeia acima do vale, a ponte do rio, muito abaixo dos seus primeiros olhares. Na adolescência o rio já tinha conquistado...
Pediu ao seu apoderado, que lhe comprara uma pequena casa, perto duma enorme rocha, que encravada acima do vale, aparentava um colosso imperturbável. Mandou-o também que lhe transferira, parte da sua fortuna, a uma pequena sucursal, duma pequena vila, a vinte minutos, a pé, da sua aldeia de nascença...
Passava os dias passeando perto do rio; ou bem encarando a Rocha colosal, olhando para o vale, como extasiado.
Ninguém me molesta aqui...
Dizem que comentou para si. Mas disso pouco ou nada sabemos, o que sim conhecemos da história, é que em uma aldeola tão pequena, com tão poucos habitantes, não é tão possível assim passar desapercebido.
Algum vizinho deveu reconhecer ao erudito. Com algum outro teve de comentar, que aquele que marchara sendo um como os demais (com apenas a idade para o serviço militar), agora voltara, trazendo consigo a fama que sempre, a cada quem, para o bem ou para o mal lhe precede.
O erudito, feito a si mesmo, tinha voltado a aldeia, era um rumor que já não era possível conter: ele por si mesmo se espalhava, voando com uma pomba.
E de tanto bater portas, a mensagem, chegou aos ouvidos do Alcaide...
Era ano de eleições; assim que o senhor Alcaide bem pensou:
- Tal vez possa tirar proveito, deste fato. A sorte é para quem a trabalha!
Decidiu-se ir então, a falar com o Ilustre, recentemente chegado, e ao mesmo tempo voltado o alcaide a percorrer o caminhos mais afastados, obrigado: regressado a seu humilde passado...
Chegou junto a porta do homem, que ainda estava acima do Rochedo, o rio contemplando. Rolou a maçaneta, a porta abriu-se, pois, estava sem fecho.
Quando o Alcaide se dispunha a entrar, o homem regressava. Por instinto ou intuição o Alcaide volteou a cabeça...
E começou a conversa. O Alcaide a tentar convencer ao homem, de que uma homenagem, era o mínimo que seu lugar natal podia fazer, para honrar os diversos contributos, que nosso erudito tinha feito, mesmo sem ele saber, pela humanidade: pelo mundo e suas gentes.
Mas o homem permanecia calado.
O Alcaide concertou uma data: dia e hora, para a comemoração da chegada.
O homem permaneceu em silêncio.
O Alcaide finalmente se despediu:
Bom, amigo, assim fica combinado. Pelo correio oficial terá noticias minhas...
E foi assim que chegou o dia.
O Concelho, no Salão Nobre, do edifício, estava repleto de gentes: na primeira fila, as autoridades. A direita da mesa de receção, um pedestal com seu microfone... No centro uma placa florida, e por cima umas letras a lembrar: "A cultura faz parte da nossa herança", tal qual era o titulo, de um dos muitos livros, escritos pelo nosso homenageado...
A hora chegou. Mas o convidado, não apareceu...
As muitas gentes reunidas, tanto da aldeia, como de comunidades vizinhas, estavam a perder a sua pouca, pequena paciência...
Finalmente, quando todo mundo estava prestes a partir, o homem entrou, subiu a escadas, e se enfiou no nobre salão, acompanhado da mão, por uma rapariga de não mais de 12 anos.
A meninha quis explicar:
- Estava passeando perto da sua casa, e vi ao senhor, caminhando rumo ao rio, achei que se perdera e trouxe aqui...
e fizeste muito bem, filha. Diz o Alcaide, que já via perigar sua próxima reeleição (que de ganha seria a terça)
O ato continuou sua avariada cronologia, tentando seguir um guião, aparentemente lógico: falaram eruditos trazidos da Grande Cidade, falara um amigo íntimo da infância, falou um representante do velho Liceu das Artes (agora abandonado, física e espiritualmente). Finalmente falou o Alcaide. Apenas demorou seu discurso, fazendo ver aos vizinhos, quanto seu esforço foi importante para conseguir, ter diante das gentes mais humildes, aquela eminência, que um dia fora um deles, em apariencia.
- E agora, diz o senhor Alcaide, . deixamos a palavra a nosso ilustre convidado, que de seguro nos fará luz, a todos e todas, em muitas das questões, que são vitais para nós, seres humanos...
Fizeram, desde a mesa presidencial, acenos, para que nosso homem, subira as escadas, que o posicionavam acima no pedestal. Finalmente, devagar, nosso homem subiu
Olhou para gente, e seu discurso pronunciou:
- Lamento, todas as expectativas, que sobre mim se tenham forjado. Não sei o que fui, não sei o escrevi... E, nada mais posso achegar ao respeito. Agora mesmo nem sei, se realmente está a acontecer isto que estou vivendo. Tem de desculpar, amigos, faz anos que perdi a palavra... Não como se foi, não sei como deixou vazio o pensamento...
Baixou do pedestal, e nunca mais ninguém lhe voltou escutar, tão sequer pronunciar, em indicativo, um verbo.
Comprava o pão, levantando a mão. Ao saudar, inclinava levemente a sua cabeça.
Pelas tardes ia a passear, e mesmo com seu olhar, algum observador podia pensar estava a falar com o rio. Junto ao rio, caminhado, passava horas pelas tardes.
A manha, antes e de depois de comer, sentava acima da Rocha, majestosos ambos. No por do sol, justo diante da casa, na soleira, sobretudo nos meses de outono e primavera. No verão, nas horas de muita calor, ficava em casa, contemplando algum livro, olhando pela janela, ou deitado na cama adormecendo lenta e levemente durante alguns minutos...
O meses passaram, os anos viraram rugas na pele...
A gente esqueceu do Erudito. Desde as falas das primeiras semanas, após sua chegada. Desde as longas conversas, que quase deram num ano de murmurações, uma vez finalizado o ato de homenagem... Já ninguém voltou a falar do homem que estava de regresso: do erudito, que não falava com a gente. Tal vez com o rio? Olhava para o vento. E gostava de sentar na Rocha, cheio de sua interior presença.
Um dia, um vizinho reparou, que naquela manha o homem não tinha sentado precisamente no rochedo.
Foi ate sua casa, rolou também a maçaneta, tal como tantos anos antes fizera aquele alcaide, que gostava de discursos... A porta abriu-se de novo, sem esforço: deitado a sua frente estava o homem de regresso.
O vizinho correu alarmado. Chamou ao cura e a uma ambulância.
Quando a ambulância chegou o homem estava agonizado, agora sim, quiçá, era um verdadeiro homem de regresso.
O senhor cura, convenceu aos sanitários da ambulância, que não levassem o moribundo ate o hospital, ao fim e ao cabo, ia morrer pelo caminho, sem remédio...
Ajudaram todos, ou melhor dito, todos tentaram ajudar, a por o homem acima da cama; mas ao final os sanitários impuseram sua lei: somente eles bastavam. Somente eles sabiam manipular o corpo acertadamente.
Uma vez pousado na cama, o senhor cura, colheu entre suas mãos, a mão esquerda do nosso erudito. Estava, pronto, a dar-lhe a extrema-unção, quando de repente o homem que vinha de regresso, ladeou a cabeça levemente. Quis como falar.
O senhor cura inclinou o ouvido, tentando aproximar-se da boca do paciente.
Com muita coragem, o homem, decidou falar, e mesmo o senhor cura, afirma ter escutado, naquel solene instante:
- Agora sim acredito que isto realmente é o certo!
Finalmente o mesmo crego fechou os olhos do nosso sábio, um homem comum moldado pelo sue tempo.
- Realmente ele sempre esteve de regresso - Dizem que o vizinho comentou, mas disto nada há que podamos afirmar que seja, realmente, certo.