OS POETAS DA NOITE.
Salvador, Bahia. O último show de Bel na Chiclete com Banana. Eu não podia perder esse evento massa de nível mundial, quer dizer, de nível soteropolitano, o que dá no mesmo pois o axé music é tudo que há de mais importante no mundo. Lá vinha eu do show do pop star baiano quando esperava a lotação, ali perto do Pelô. Um sol pra cada um. As fitinhas do Senhor do Bonfim nos pulsos, o abadá do Chiclete, o boné do Vitória e a chinela havaianas. A pochete com os documentos e a grana do busão. O shopping Marapendi ali perto. Um sorvete de pitomba até cairia bem mas resolvi me refrescar com uma água de côco. -"Olha o acarajé. É o preferido de Ivete." Gritou a mulata faceira e bonita com vestido de chita colorido. Estampas amarelas, verdes, pretas e dourado, bem parecido com o uniforme da seleção da Jamaica. -"Se o ônibus da delegação da seleção jamaicana de futebol passar aqui, pega a baiana do acarajé e leva pra copa!" Comentei com o caboclo de terno branco, a minha frente na fila do busão. O moço riu. Os cabelos tingidos de branco, olhos verdes. Estava parecendo o Zé Wilker em Gabriela, Cravo e Canela. Ainda hoje me pergunto como a igreja católica permitiu aquela cena final, o cara totalmente pelado, com a Sônia Braga, descendo o Pelourinho? O ônibus do bairro Periperi encostou. Por sorte consegui me sentar. Um sujeito esquisito me encarou. Bermuda jeans, camiseta do Bahia, não o tricolor de aço da capital mas o Bahia de Feira de Santana. Óculos escuros e boné do Lakers. Olhava demais pro meu lado. O cabra veio até onde eu estava. -"Bastião? Bastião de Nena?" Na Bahia é assim, associam o nome a alguém, a mãe ou o pai, pode ser a cidade ou o bairro também. Zé não é só Zé, tem que ser o Zé de Laura, o Zé de Lagoa Santa, o Zé de Dora, etc. Eu sempre fui chamado de Bastião de Nena, minha mãe, assistente social respeitada de Periperi. -"Sou eu mesmo. O moço me conhece?" O cabra tirou o boné. -"Sou Genivaldo, filho do Dico, o vendedor de verduras da rua Silas Peixoto. Estudamos juntos na escola técnica." Puxei pela memória. -"Sim. Me lembro agora. Moraste na rua Ulisses Guimarães, irmão de Antônio de Castro, o ruivo. Sua mãe está bem?" O cara abaixou a cabeça. -"Infelizmente se foi, num sabe? Vai fazer um ano. Estou indo ao velório da amiga dela, a dona Emengarda." Tomei um susto. -"Eu sinto pela sua mãe. Essa Emengarda é a senhora que trabalhou na padaria do Noca?" O sujeito coçou o queixo. -"Sim. Ela trabalhou numa padaria. Era amiga de minha mãe e sou amigo dos filhos dela." Era muita coincidência. -"Conheço os filhos dela. A dona Emengarda era muito amiga de minha família. Não a vejo há décadas. Ela ajudou muito a minha mãe, quando esteve doente. Onde será o velório?" O moço olhou o relógio. -"Na casa da filha dela, no bairro Macuco. Vamos juntos." Resolvi seguir o rapaz. Não custava nada me despedir daquela que fora muito amiga de mainha. Descemos do coletivo e andamos por meia hora, por becos, vielas e ruas esburacadas. Uma casa simples. Uma multidão no velório. -"É aqui, meu rei. Vou dar um pulo em casa e já volto." O meu companheiro se foi. O alpendre estava tomado de gente. Uma choradeira vinha da sala. O quintal dos fundos. Dei meia volta na casa pois geralmente a família fica nos fundos. Alguns rapazes passavam uma garrafa de mão em mão. -"Toma aí, meu rei. Pra curar a dor da perda e falta que titia fará." Rejeitei a bebida mas insistiram que eu bebesse. Dei uma talagada e senti a garganta queimar. -"Aquele é o irmão da defunta. Veio de Serra Talhada, Pernambuco." Disse o rapaz da garrafa, alterado. O homem veio e me abraçou forte. Chorou no meu ombro, copiosamente. -"Ai, amigo. Dói muito. Ela era tão boa." Puxei o homem para um banco e o consolei com algumas citações bíblicas que eu sabia. O homem começou a contar sua história de vida e a relação com a irmã defunta. Incrível como ele elogiava a defunta. Fiquei uma hora e meia ouvindo aquele homem. -"Você conhecia a minha irmã?" Que pergunta óbvia. Se não conhecesse não estaria ali naquele fim de mundo. -"Sim. A dona Emengarda foi amiga de mainha. Uma excelente vizinha." O homem desatou a chorar de novo. A noite caiu. Fui chamado para uma rodada de dominó. Meia hora jogando dominó. Fiz amizade com os parceiros de jogo. Os cantos religiosos vinham da sala. A reza do terço. Três rapazes dormiam debaixo de uma goiabeira. Os cães latindo. Me livrei do irmão da morta, fingindo vontade de ir ao banheiro. Enveredei pela cozinha, onde me botaram um prato e uma colher na mão. -"Come filho. Tem moqueca, baião de dois e sarapatel." Uma fila de gente pra se servir nos panelões fumegando num fogão de lenha. Um cheiro delicioso. Minha barriga roncou. Uma multidão dentro da casa. Uma fila pra usar o único banheiro da casa. Nada de ver meu amigo do ônibus. Eu não conhecia ninguém alí, exceto a defunta no caixão na sala, onde eu ainda não conseguira chegar. As mulheres cantando as músicas que a morta gostava quando viva. Queria me despedir dela e agradecer pelo carinho e amizade com minha mãe, só isso. Voltei ao banco no quintal, agora com um belo prato de comida, digno de uma refeição de pedreiro. Lá veio a garrafa de vinho. Dez minutos depois, passou a garrafa de cachaça. Dessa vez não me obrigaram a tomar, eu mesmo me servi. A chegada do padre. Era um missionário alemão, de sotaque inconfundível. Fui para a frente da casa. Só consegui ver a cruz na sala. De longe eu vi o caixão. O padre falou por exatos quarenta minutos. Um sermão lindo sobre o Cristo bom pastor e as qualidades daquela senhora que tinha partido pra terra dos pés juntos. Algumas pessoas deram depoimentos sobre a relação com a defunta. Os aplausos. Ergui o braço e falei umas palavras. A voz embargou. -" Dona Emengarda era a melhor amiga de minha mãe. Minha mainha falava dela com orgulho e era uma vizinha especial. Que Deus a receba no seu reino pois a dona Emengarda foi um anjo na terra." Fui aplaudido. Me senti bem ao botar pra fora o que sentia. Conversei meia hora com o vigário Clarismundo, um bom sujeito. Horas depois, uma bandeja de pães e broas de milho. Garrafas de café. Chocolate quente. Consegui, finalmente, entrar no banheiro. A madrugada. O vento frio. Entrei num quarto e me aconcheguei num beliche. Dormi por umas três horas. Umas sete pessoas dormindo no local, algumas entre almofadas e colchões no chão. Despertei com som de violões e violinos. -"Os poetas da noite chegaram." Gritou alguém. Achei até que era folia de reis, devido as roupas e violões mas os seis rapazes pediram a atenção de todos e começaram a declamar poemas de Castro Alves e Fernando Pessoa. Por quase uma hora a minha alma voou nas asas daqueles poemas lindos e reconfortantes. De um longo poema, Tabacaria, guardei na mente: "não sou nada, nunca serei nada, não posso querer ser nada. A parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo." Faz pensar. A cada poesia uma canção. A Viagem, de Roupa Nova. Epitáfio, dos Titãs. Me lembrei de Morte e Vida, Severina. Nunca tinha visto aquilo, os poetas da noite. Os rapazes se foram, levando a poesia e uma garrafa de cachaça. Olhei, a sala vazia. O caixão, as velas, o crucifixo. As coroas de flores. -"Agora eu entro!" Disse a mim mesmo e me perguntando onde teria ido a multidão que estava antes na sala? Os passos lentos. Fiz o sinal da cruz. Olhei fixo para a defunta e.... não era a dona Emengarda que eu conhecia. Olhei no caderno de condolências da funerária Vai Com Deus. Estava lá a foto da defunta.O nome dela era Emengarda Rosa de Assis. A que eu conhecia era Emengarda da Rocha. Sabia o sobrenome pois tinha estudado com a filha dela, a Raiane Gabriele. Alguns parentes da mulher voltaram a sala. Saí de fininho e fui embora. Fiquei com a imagem daquela senhora na cabeça, no outro dia inteiro. Que mancada a minha. Que pessoa maravilhosa deve ter sido aquela mulher pra merecer um velório festivo e alegre, com todos tecendo elogios e chorando saudosos! Uma semana depois, no mercado municipal, encontrei a dona Emengarda, na banca de Seu Nestor, escolhendo cheiro verde e óleo de dendê. Cumprimentei-a. -"Meu marido Florisvaldo faleceu há três meses. Viúvo é quem vai." Não a reconheci de imediato. Aparentava ter trinta anos a menos. Usava uma peruca loira e uma maquiagem perfeita. As sobrancelhas desenhadas e um notório preenchimento labial. Estava ela com roupa de academia de ginástica e com um rapaz bem mais jovem, que achei ser neto dela mas isso caiu por terra com o beijo apaixonado deles. O rapaz a chamou de Gardinha. Pelo andar da carruagem, os poetas da noite vão demorar a visitar essa Emengarda. Outra vez saí de fininho. FIM