ACONTECEU NA PRAÇA

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ACONTECEU NA PRAÇA

- ARISTEU FATAL

A praça Vicentina de Carvalho é um ponto de destaque no miolo da Vila Madalena. Primeiro, o nome. Vicentina era irmã do “poeta do mar”, o santista Vicente de Carvalho. Segundo, pelo número de frequentadores que, em sua maioria, levam os cachorros para os habituais passeios diários. É toda circundada por belas mansões, não possuindo prédios, devido a restrições à lei de zoneamento. Bem arborizada, tem um aparelhamento de ginástica, um parque infantil, e uma pequena biblioteca, onde se pode obter livros, por meio de troca, livremente. Nesse local é que Júlia, uma jovem de 17 anos, moradora dos arredores, leva seu labrador marrom, o Genésio. Ela é filha de Marina, empresária do ramo de confecções de alto padrão, e de Teófilo, um bem-sucedido advogado. Tem um irmão, Marcelo, bem mais novo, com 9 anos. Júlia estuda num colégio famoso da região, estando para terminar o curso de segundo grau. Pretende seguir a carreira do pai. A família é de posse. No dia a dia, provocado pelos animais, não rara é troca de conversa entre os frequentadores da praça, daí acontecendo o início de amizades. Júlia, muito comunicativa, bonita, já havia feito várias amizades, entre elas com um jovem americano, intercambista, que foi recebido por uma família moradora dos arredores. Seu nome, Richard, bem-apessoado, e de descendência negra, sendo de pele parda. Vindo de uma família simples, com o intuito de ter um acréscimo de recursos, nas horas vagas leva cachorros da vizinhança para os passeios, e também corta a grama dos jardins das casas. Richard é oriundo da cidade, Minneapolis, onde houve um famoso caso de morte do negro, amigo da família, por um policial, causando um sério problema de racismo. Dos encontros diários, Júlia começou a ter uma grande simpatia pelo rapaz, mormente porque já tendo feito curso de inglês na Cultura Inglesa, ela estava praticando a língua. Daí foi um passo para o início do namoro. Encontravam-se na saída da escola, nos shoppings, em todas as oportunidades. Cada vez mais apaixonados. Os pais de Júlia não tinham o mínimo conhecimento do “affaire” da filha. Como estavam em férias escolares, Júlia estava sendo obrigada a levar seu irmão Marcelo nos passeios diários do Genésio, e o menino, muito esperto, notou o modo como a irmã e Richard se tratavam, apesar deles procurarem não dar demonstrações do namoro. Na hora do jantar, todos reunidos, Marcelo conta o que havia visto na praça. Marina e Teófilo ficaram surpresos, pedindo explicações a Júlia. Esta, sem dizer uma palavra, sai da mesa chorando, dirigindo-se para seu quarto. Marina, ao ver a reação da filha vai atrás. Teófilo nem terminou o jantar.

- ALBERTO VASCONCELOS

Intrigado com aquela revelação, Teófilo foi também ao quarto da filha e através da porta semiaberta ouviu a declaração que fez fugir-lhe o chão. A filha estava namorando o rapaz negro e caso a família não permitisse, ela fugiria com ele para os Estados Unidos. Procurando colocar o tom mais calmo na voz, Teófilo entrou no quarto da filha e disse a ela que, convidasse o rapaz para jantar com eles no próximo sábado as vinte horas. Mãe e filha olharam espantadas para homem que desde sempre se mostrava de princípios rígidos, de convicções inabaláveis principalmente quanto à preservação da linhagem familiar. Talvez pelo inusitado do convite, Richard chegou atrasado. Não se pode dizer que estivesse malvestido, mas seu jeans surrado do dia a dia, não combinava bem com o ambiente requintado em que estava se sentindo como peixe fora d’água. Teófilo fez questão de que todos falassem em inglês para que o rapaz se sentisse confortável, pelo menos ao responder as indagações ou discorrer sobre suas aspirações para o futuro, vez que como intercambista deveria já estar no curso superior. Mas não. Ele ainda cursava o ensino médio e durante toda permanência foi acumulando pontos negativos. No momento que os franceses chamam hors d’oeuvre, bebeu de um só trago todo o cálice de licor e tomou meio prato de minestrone fazendo desagradável ruído; na entrada, sem tocar no prato, olhou o tartare com expressão de nojo; no prato principal coq au vin, destacou com as mãos a coxa do galo e comeu salada niçoise; indiferente à sequência, tomou goles generosos das taças, do espumante, vinho branco, vinho tinto e água sem se importar com a devolução aos seus devidos lugares e, já na sobremesa, comeu o creme bruleé com a colher usada desde a minestrone da entrada. A mistura dos diversos vinhos com o conhaque, servido ao final da refeição, liberou de vez os modos e o palavreado repleto de gírias. Sem pedir licença, retirou o casaco com os dizeres Black Lives Matter estampado nas costas em um quadro amarelo. Matreiro, Teófilo dirigiu a conversa para as atividades dos negros da sua cidade. Entusiasmado pelos ideais e pelo vitimismo, Richard falou de seu envolvimento com o tráfico de drogas, dólares falsos e vandalismo nas manifestações e, para coroar, que sua estada no Brasil era para fugir da polícia por conta de seu envolvimento com tráfico de imigrantes ilegais na fronteira com o México. Ao se despedir, Richard perguntou a Teófilo se poderia levar uns charutos que ele achara maravilhosos...

- CLÉA MAGNANI

Por mais que Marina se recusasse a aceitar a discriminação racial, o comportamento de Richard a deixou em pânico. Além de todos os crimes que o rapaz, tocado pelo álcool, fez questão de contar como uma apresentação negativa de seu comportamento, era um alcoólatra! Que futuro daria para Júlia? Teófilo, ao ouvir a filha dizer que iria fugir com Richard, percebeu que a perderiam de qualquer maneira. Na manhã seguinte, Marina tentou conversar com a filha, que não dava nenhuma razão aos pais, os chamando de preconceituosos, racistas, e vaidosos de sua posição social, que os faziam não aceitar ninguém que não fosse branco, rico e possuísse o carro do ano; que Richard era o amor de sua vida, e que ela o seguiria para onde fosse! Sem argumentos, a mãe deixou Júlia em seu quarto, e foi para o jardim onde o véu de lágrimas que jorravam de seus olhos de mãe que está vendo o caminho tétrico que a filha escolheu para si, turvava sua visão. Como Júlia poderia estar jogando fora, a vida que lhe deram, para correr atrás de uma aventura sem futuro? Semanas depois, Júlia ainda evitava até tomar as refeições à mesa, para não enfrentar os pais, e chegou muito tarde da aula aquela tarde. Entrou batendo a porta, e subiu correndo para seu quarto, trancou-se lá e seus soluços eram ouvidos pela casa toda. Não atendeu aos apelos de sua mãe, que ouvia barulhos de coisas sendo atiradas e vidros se quebrando. Naquele dia, quando se encontrava com Richard na praça após as aulas, conversavam combinando uma fuga espetacular. Ele, contando com a excelente posição financeira dos pais dela, a induziu a fazer certas “retiradas” semanais, usando o cartão de sua mãe, e guardar uma parte para a fuga, enquanto outra parte ela entregava a ele ”para guardar” e ir comprar as passagens para fugirem. Abraçados, não perceberam os dois agentes da Policia Federal que o detiveram para averiguações. Desesperada, Júlia ficou andando em círculos pela praça, aguardando que ele voltasse logo, pois ela confiava no que o seu amado disse: - que o que ele falara na casa de seus pais aquele dia, havia sido porque ele não estava acostumado a beber, e dissera um monde de bobagens. – mas as horas passavam ele não ligava, nem atendia suas chamadas. Estava detido como traficante, e temia acusar quem o enviara ao Brasil para “tomar conta” de imigrantes com dezenas de embalagens de drogas dentro do estômago, que ele guiava, como um rebanho de cabras, até o lugar combinado para a “desova”. Assim, usando o intercâmbio como disfarce já havia feito três viagens. Porém um dos refugiados ao ser detido, começou a vomitar, pondo tudo a perder e o acusou.

- ARISTEU FATAL

Richard foi preso pela Polícia Federal, e como foragido de seu país, depois de comunicado à polícia congênere dos EUA, logo foi extraditado. Júlia durante muitos dias permaneceu em seu quarto, até que seus pais conseguiram abrir a porta, encontrando-a em estado bem delicado de saúde, pois viveu às custas de biscoitos, chocolates, e água, dos quais sempre seu aposento era provido. Exânime, foi levada para uma clínica de recuperação. Ali permaneceu por uns dez dias. Aproveitando os momentos em que ficava a sós, através de amizades, ficou sabendo do destino de Richard. Voltando para casa, pareceu diante dos pais estar esquecendo de seu drama; presente nas refeições, foi para a escola, levando uma vida aparentemente normal. Mas, na verdade, começou a arquitetar um plano para fugir para os EUA. Esperou completar a maioridade. Com as mesadas, angariou certa quantidade de dinheiro, conseguindo comprar as passagens, e tendo o seu passaporte em dia, obteve o visto para entrada no país americano. E, assim, passaram-se uns meses. É claro que sua ideia era ir para a cidade natal de Richard, procurar sua família, e, enfim, saber a quantas andam o caso de amado. Comunicou-se com a família dele, procurou saber de Richard, bem como, demonstrou seu desejo de ir para Minneapolis. Acreditava, com a ajuda deles, conseguir encontrar meios de subsistência, e poder contar, de como era possível pelo menos ver Richard. Como se sabe, o americano, de modo geral, é insensível quanto a esse tipo de problema como o de Júlia, ainda mais com respeito ao filho Richard, que só lhes dera dor de cabeça. Não responderam à missiva de Júlia. Isso, não teve qualquer repercussão em relação a ela. Mantinha-se com os mesmos propósitos. Assim, quando lhe surgiu a oportunidade, arrumou as malas e partiu, deixando um bilhete para os pais. Marina e Teófilo só puderam dizer, entre si, que Deus a acompanhe. Como era de se esperar, Júlia foi muito mal recebida pelos pais de Richard, que apenas falaram horrores do filho, nem querendo perder tempo com o assunto. Como ela falava a língua, procurou uma repartição policial, onde lhe informaram que Richard, tido como um bandido perigoso, procurado pela Interpol, foi encaminhado para o presídio de segurança máxima ADX Florence, situada nas Montanhas Rochosas do Colorado, conhecido como a famosa Alcatraz das Montanhas Rochosas. Júlia nem desarrumou as malas. Um Uber levou-a de volta ao aeroporto. Mais um caso de o bom filho, filha no caso, à casa torna!

Alberto Vasconcelos, Aristeu Fatal e Cléa Magnani

Enviado por Alberto Vasconcelos em 28/07/2021

Código do texto: T7309186

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Comentários

28/07/2021 20:43 - Osnir da Silva

A história deste conto nem é tão inverossímil. Eu lendo e me lembrando de uma moça que conheço... Felizmente o rapaz com quem ela casou não era um bandido. Mas a vida dela virou um inferno... Ela namorava um rapaz que era contador na empresa têxtil em que os pais dela trabalhavam. Naquela época, no final dos anos 60, o cargo era muito prestigiado e os pais da moça viam o namoro com muitos bons olhos. Só que apareceu na vida dela um jovem músico. Bonitão, diferentemente do contador, contador de piadas, fazia todos rirem, em especial a garota. Um autêntico Don Juan. Resultado? Para desgosto dos pais, ela trocou o contador pelo músico. Casaram-se e tiveram filhos. O ?Don Juan?, deixou de sê-lo. Havia deixado a música, pois esta não colocava comida na mesa. A única coisa que o ex-Don Juan não abrira mão foi da bebida e da boemia. Acabou virando guarda de trânsito. Depois motorista de caminhão. Até que um dia, quando voltava bêbado para casa foi atropelado e passou seis meses hospitalizado. A moça, sem esquecer os conselhos dos pais, e como numa espécie de mea-culpa, se dispôs a pagar pelos seu grande pecado, amargando uma convivência doentia com o ?Don Juan?. Isso durou até mais ou menos quando ambos já tinham chegado aos 60 anos de idade, quando a moça, agora uma respeitável senhora, pegou o marido "pulando a cerca". Ela sabia, desde sempre, da infidelidade do marido. Mas aturou até que a ?pulada de cerca?, literal, pois a traição do marido havia sido com a vizinha , finalmente a acordou e pediu o divórcio. E o contador? Tornou-se um respeitável membro da comunidade, tendo galgado cargos na empresa, chegando a diretor e enriqueceu por causa de sua habilidade com investimentos...

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