5ª. Geração

23.07.2021

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Recebo uma ligação de vídeo pelo celular, de amigo antigo que mora em Chicago nos Estados Unidos. Há tempos não nos falávamos.

-Fala Cera, tudo bem com você? Agora nonno?

-Fala Stronzo, tudo bem - apelido que demos a ele quando viajamos juntos para o Nordeste em 1974.

-Então, conheço agora a sua 4ª geração. Que loucura! – fala no seu português com sotaque meio americano, meio italiano.

Não atinei para esse fato até então, e ao me dizer, percebi que realmente era verdade. Quanto tempo.

-Conheci o seu pai, você, os seus filhos, e agora a sua neta pelas fotos que me enviou. Quatro gerações de Ceravolo. Eu mereço – responde, olhando-me fixamente pelo vídeo, com seus olhos azuis cristalinos, cabelos quase que totalmente brancos, com um riso sarcástico nos lábios. Uma figura, o querido Stronzo.

- Foi no cursinho que te conheci, tá lembrado – complementa.

-Sim, e te convidei para irmos para o Nordeste de vapor pelo São Francisco, depois do vestibular. Foi o ano de 1973 exatamente que fizemos o cursinho. Quantos anos faz? – pergunto-lhe.

-Deixa-me ver... Mas o engenheiro é você, caramba.

-Sou péssimo em cálculo.

-Quarenta e..., quarenta e oito anos exatamente. Quase meio século.Que loucura mesmo.

-Pois é. Você teve o prazer de conviver comigo todo esse tempo, uma dádiva não acha? – respondo-lhe sorrindo, que começa a rir também.

Conhecemo-nos no cursinho pré-vestibular, ele estudava para entrar na faculdade de arquitetura, eu para a de engenharia civil. Era namorado da irmã mais velha da minha namorada na época, e foi quem nos apresentou. Ficamos amigos, e o convidei para essa viagem de vapor, carona, barraca e pouco dinheiro que eu planejara ir depois do vestibular. Também, conheci no cursinho o finado amigo de apelido Alemão, que estudava para engenharia civil como eu, e que foi nessa viagem com mais outro colega meu do colégio. Éramos quatro pessoas, sendo eu o amigo comum e mentor da aventura.

-Aquela nossa viagem foi fantástica, não foi? – diz ele.

Rememoramos então algumas passagens, tais como pegarmos o vapor de roda d’água, o mesmo do rio Mississipi – eram os barcos de fabricação americana, em Pirapora, a nascente do rio São Francisco, e viajarmos rio abaixo por mais de uma semana até Petrolina; das paradas nas barrancas do rio para suprir de lenha a caldeira, de pegar pessoas que iam de uma cidade a outra; de encontrar e atracar no meio do rio com outro vapor subindo para receber o correio; da compra de engradado de pinga em Januária, e bebermos ao final do dia varias caipirinhas que fazíamos e todos bebiam, inclusive a tripulação; das caronas nas carrocerias de caminhões, e em uma delas, conhecermos a jaca, deliciosa fruta que até hoje adoro, que o caminhoneiro nos comprou à beira da estrada; dos desencontros em praias nas cidades que combinávamos armar a barraca, pois dividíamos, a cada jornada, a dupla que a levaria antes para montar o acampamento, e em um destes, foi a dupla que chegara antes de nós, à delegacia de policia da cidade dizendo que estávamos perdidos, e outras muitas peripécias. E, a cada acontecimento, bom ou ruim, era motivo de comemoração, com cervejadas e risadas nos botecos dos lugares que ficávamos. No fim, tudo era festa e dava certo. A beleza descompromissada de viver da juventude.

-Sim, foi incrível mesmo. Você lembra que o Alemão só tomava coca-cola, e depois, quando soubemos que entramos na faculdade em Fortaleza e fomos bebemorar, demos cerveja para ele dizendo que coca era coisa de “boiola”. Ele gostou tanto que não parou mais, virando alcoólatra, vindo a falecer de cirrose tempos depois. Que coisa não? – comento com um pouco de culpa, pois fui quem o incentivou a experimentar a bebida naquele dia.

-Quantos anos faz que ele morreu? – pergunta.

-Ah, mais de dez anos acredito – respondo.

-Uma pena mesmo. Você sabe que não conheci os pais dele? Nas vezes em que fui a sua casa, nunca os encontrei. Esquisito não?

-Pois é. A família era meio esquisita, mas gente boa – complemento.

-Sim, o Alemão era uma figurinha, com aquele tamanhão todo, desengonçado – comenta, fazendo-me visualizar a sua imagem mentalmente, com seus mais de um metro e noventa de altura, cabelos loiros lisos, de fala mansa e riso rouco, com seu humor ferino, com tiradas e comentários que incomodavam as pessoas. E muito inteligente, vindo a fazer mestrado nos Estados Unidos, na mesma cidade em que hoje mora o Stronzo. Gostava do Alemão.

-Bem, querido Stronzo, foi e é um prazer conviver contigo tantos anos, mesmo que os últimos dez, doze com você longe. Tem que vir para cá conhecer a minha 4ª geração, a minha princesinha.

-Sim, vamos ver quando vai dar, com essa droga de pandemia que tá difícil de acabar.

-Bacio do Nonno Cera – despeço-me.

-Bacio Vô Maluquinho, ehehehe – encerrando ele a conversa, desligando a chamada.

Depois que falamos, comecei a fazer as contas se verei a minha 5ª geração, meus bisnetos. Conclui ser difícil, pois estarei com mais de noventa e sete anos, quase cem!

Mas, quem sabe...

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Fernando Ceravolo
Enviado por Fernando Ceravolo em 23/07/2021
Reeditado em 23/07/2021
Código do texto: T7305753
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