O Quebra – Quebra

Era o ano de 1986, o pessoal da turma ECHO – I ainda não tinha recebido a fita de grumete após seis meses de estudo na Escola de Aprendizes – Marinheiros do Ceará. A turma, exultante, preparava – se para ver os boys da ECHO – II chegarem, para dividir a escala de serviço e aumentá-la para dois por um, bem como assumir o serviço de rancho.

Cansados do regime de férias, os marinheiros estavam excitados, com os nervos à flor da pele; as discussões e zangas eram constantes e frequentes, mesmo entre aqueles do mesmo estado, irmãos naquela empreitada difícil a caminho do futuro. dividiam as mesmas dificuldades e as mesmas lembranças da terra natal.

O grupo mais saudoso, mais plangente era a dos cariocas. A diferença do Ceará para a cidade maravilhosa era a mesma que da palha para o ouro. E, mesmo com toda hospitalidade do povo cearense, não havia musas desfilando de fio dental pelas praias, fazendo “topless” e povoando a imaginação de cada um deles, sambistas por natureza. Assim faziam as mais belas composições exaltando a beleza de suas amadas, colocando – as em pedestais bonitos e valiosos, como o das Escolas de Samba no recém – inaugurado sambódromo na Marquês de Sapucaí.

A obra de Niemayer era o orgulho para a capital cultural do país e um ninho mais que descente para o desfile que tanto rendia aos cofres da Prefeitura Municipal do Rio de Janeiro.

Muitos cariocas gostaram das cearenses, encantadas com o trato que lhes davam e com o garbo exalado pela bela e respeitada farda da Marinha do Brasil; mesmo assim, não era a mesma coisa. A mulher da cidade grande era uma mulher que sabia o que queria – carinho. Já as terra de Alencar eram muito submissas e tinham seu o homem como rei, faziam – lhe todas as vontades, sacrificando, muitas vezes, sua felicidade, para agradar ao parceiro, tosco e primário. Embora não faltassem as “Golf – Mikes”, Gatas de Marinha, os cariocas não lhes alimentavam a ilusão de casamento, devido à sua falta de horizontes; viviam para o lar, sem escolaridade e com uma preguiça imensa de progredir; faltava à maioria delas ambição – e as que assim a revelavam não tinham o mínimo pudor de escondê – la – deixando qualquer homem com o “pé atrás”, como se dizia no Ceará. Será que ela me ama mesmo, ou só quer me usar?

Morando numa casa perto do trilho no morro próximo à rua Padre Mororó, uma turma de futuros grumetes e só esperando a promoção, estava se preparando para sair. Iriam à praça do Liceu encontrar com umas “Golf – Mikes” e outros marinheiros conterâneos e uns “paraíbas” mais chegados, que os imitavam em tudo: no jeito, no linguajar, mas não tinham ainda sua argúcia e profundidade de intuição. “Ganhariam se chegassem a pisar no Rio”, sempre diziam a eles os cariocas com um misto de ironia, pena e incentivo.

Na turma de licença daquele sábado de janeiro, estavam três destaques da turma, componentes do mesmo quarto de serviço, desde os tempos que os grumetes da DELTA – II os estavam adestrando para o serviço no Stand de Tiro da avenida Leste Oeste. O GR portava na bandoleira o fuzil FO o aprendiz, um cassetete de madeira. Numa alternância de vinte e quatro horas, faxina e estudo obrigatório.

Eram Artur, Sávio e Guilherme. Respectivamente, Amorim, Ventura e Bandeira; eram esses seus nomes de guerra. Aquele um rapaz franzino, pequeno, de tez bem escura, azeitonado, cabelo carapinha, de um sorriso que mostrava uma dentadura perfeita e límpida; de fazer inveja a qualquer dentista, pelo cuidado esmerado do negro com a higiene bucal, nunca faltando dentifrício, fio dental e colutório. Tudo comprado com a ajuda de custo que recebia da Marinha e o minguado e -nem sempre constante dinheiro mandado pela família; residente no Morro do Adeus em Bonsucesso no Complexo do Alemão.

Já Ventura, como o amigo, também era de cor; não tão pronunciada como a do amigo de farda e de farras constantes nas noites de Fortaleza com as GMs e os “cafis” (homossexuais na gíria de Marinha). Era de uma negritude, devido à mistura de raças, mais chegada ao “marrom bombom”. Era mulato, tinha o cabelo escovinha ( como todo aprendiz): alto, magro, mas musculoso; de altura próxima a um metro e noventa centímetros. - de uma capacidade natural para o mando. Todos o respeitavam entre o grupo numeroso de cariocas, Mesmo os GRS tinham – lhe muita consideração.

Já Bandeira era um touro indomável. Quase um metro e noventa e cinco centímetros, musculoso, todo torneado de academias de musculação; Atlético, de braços e pernas descomunais como um Hércules da Mitologia Grega, de cor morena bronzeada de praia, com um temperamento difícil de controlar: afoito e explosivo. Apertava a mão de qualquer homem, firme, mas esmagando. Não tinha consciência da própria força.

Descritos nossos três personagens vamos ao assunto.

Os três amigos inseparáveis partiram para a praça do liceu no bairro de Jacarecanga, de belos casarões antigos, remanescentes de uma época de esplendor, luxo e poder. Lá já habitava a fina flor da sociedade fortalezense nos meados da década de trinta do século XX. Na praça, ponto de reunião da marujada, encontravam – se outros colegas de turma e garotas que sempre os acompanhavam em suas farras e noitadas.

Bandeira, que havia conhecido uma bela jovem da Parquelândia na semana anterior, no domingo de visita, trazida pela irmã de uma ex – namorada com quem tivera um rápido e tórrido idílio, tão frequente entre os alunos da escola, resolvera se despedir da turma e ir ao bairro dela para encontrá – la, conforme já haviam combinado.

Ela tinha os olhos cor de mel, cabelos compridos e bem negros, de um brilho lustroso, caindo – lhe pelos ombros. A pele morena como as dos índios, os lábios finos e um sorriso radiante, de belos dentes. Era bem mais magra que ele, franzina, de pernas longas e pés delicados.

Os dois encontraram – se na feirinha da Igreja Redonda. Muitas jovens frequentavam. No local havia barracas vendendo comidas típicas como baião - de – dois, vatapá de camarão e galinha com pimenta do reino, creme de frango, canja; salgadinhos de toda espécie, coxinha, enroladinho, esfira, quibe e doces, como Romeu e Julieta e brigadeiro. Havia música também. Românticas, brasileiras e internacionais, bem como o forró, ritmo tradicional do Nordeste.

Bandeira chegou sozinho ao local, indicado pela menina, olhou para as pessoas e o movimento pensou consigo “este lugar é muito maneiro”. As feirinhas encantavam os cariocas, pois como as barracas na Beira Mar e nas praias, eram eventos que não existiam no Rio de Janeiro e compensavam a falta do cachorro quente de cinquenta centímetros com batata palha, milho, ervilha e ovo de codorna, vendido nas ruas pelos camelôs; compensavam, também, a falta do Mac Donald’s e do Bob’s com seus sanduíches deliciosos e enormes “milk – shakes” de baunilha, chocolate, morango e abacaxi.

O marinheiro ficou circulando entre as barracas e, após distrair – se com o que via, acabou por avistar a jovem. Estava linda! Vestida com uma blusa preta com estampa de sua cantora predileta, Janis Joplin, uma fivela em forma de pena nos cabelos negros em que havia sido feito o procedimento químico de “luzes” num cabelereiro famoso nas imediações da avenida Bezerra de Menezes, o renomado Luan. O conjunto era completado com uma bermuda jeans e uma sapatilha preta. A menina tinha uma beleza singela que encontrara o aprendiz. Ficaram passeando de mãos dadas, conversando, rindo, apreciando – se um ao outro. Trocavam juras de amor e Bandeira contava como era a vida na terra natal dele e no bairro onde assistia, na zona norte, em um subúrbio da Leopoldina chamado Ramos, terra da Escola de Samba Imperatriz Leopoldinense. O aprendiz morava numa rua entre o Social Ramos Clube, entidade de lazer respeitada e de causar inveja até mesmo às da zona sul e a dita agremiação carnavalesca,

Na conversa Bandeira falava sobre a infância, as amizades com outros jovens que, sem uma perspectiva de futuro, haviam até mesmo envolvido – se com o mundo do crime. Tudo para a jovem não passava de notícias nos jornais da TV Verdes Mares, afiliada à Rede Globo no Ceará, anunciadas geralmente no Jornal Nacional, o de maior audiência da programação. Ela escutava calada, prestando muita atenção, embrevecida com a conversa do aprendiz. Este já havia definitivamente conquistando – lhe a simpatia, a menina via nele um homem diferente de todos os que sua pouca idade permitira namorar.

Ele tinha planos, era organizado e mostrava – se muito cortês para com ela, uma jovem estudante do Liceu do Ceará e criada com muito cuidado pelos pais, cujas posses não eram muitas mas o desvelo inegável. Havia pouco tempo findava o namoro com um rapaz de má índole e que era birrento e beberrão; a conselho dos pais, sempre preocupados com a felicidade da filha, deixara para trás aquela aventura inconsequente e que nada lhe traria de bom; logo ela, filha única e xodó da família, cujas raízes estavam no interior.

A jovem, pela conversa do marinheiro, já alimentava a idéia de apresentá – lo aos pais e oficializar o namoro. Estava gostando dele e sentia – se correspondida. Não havia motivos para continuar com aqueles encontros esporádicos e fortuitos nas ruas, aos quais os jovens chamavam de ficar. Bandeira para ela era já mais do que um mero “ficante”, queria – o como namorado e, sendo assim, conhece – ló cada vez melhor, com a aprovação da família, sempre interessada em que ela arrumasse um bom casamento, com um homem correto e trabalhador. O marinheiro tinha um emprego fixo, com um bom ordenado, segurança e estabilidade, para iniciar um relacionamento sério e duradouro.

Tudo se encaminhava bem entre os dois, quando Bandeira escutou atrás de si uma voz ameaçadora:

- Ei, meu chapa, largue a minha namorada! Ou então, você vai se dar mal! – vociferou um homem ainda novo, aparentando uns vinte e poucos anos e visível estado de embriaguez alcoólica.

O marinheiro imaginando tratar – se de um engano não deu – lhe a devida atenção, pois a menina disse ao marinheiro, logo que marcaram o primeiro encontro, que não tinha namorado.

- Porra! Tu é moco, seu fio duma égua! Tá pensando que por que é forte vai botar boneco comigo? O tom de ameaça aumentou e o rapaz mostrava – se cada vez mais agressivo, diante da indiferença e impavidade do marinheiro.

- Larga ela, seu baitola! – o berro ecoou por toda a feirinha e foi acompanhado por um empurrão com a mão direita no ombro do Bandeira. O marinheiro desta vez deu um ar de impaciência, mas teve forças para manter a calma e, tranquilamente, indagou à garota quem era aquele sujeito, truculento e sem educação. A menina sentindo – se amparada e protegida, respondeu segura de si que não sabia. Bandeira tentando evitar qualquer atrito maior, tornou a pergunta à menina. A resposta foi negativa. Com toda civilidade, Bandeira olhou pra o rapaz e com placidez na voz disse que ele se enganara, que a menina em questão não era a namorada dele, não; que ele a estava confundindo com outra pessoa. Bastaram as últimas palavras, para que ele recebesse um soco no rosto, esquivado com destreza por Bandeira e acompanhado por um “up” certeiro no queixo do desafeto. Caído no solo, desacordado, levou bons instantes para se recuperar do golpe, inesperado para ele. Foi ajudado por amigos e recuperando os sentidos, buscou a ajuda do máximo deles; para dar uma lição no marinheiro que lhe roubara a namorada.

Esse homem em questão era aquele com quem a moça, a pedido da família, rompera o namoro por ser considerado uma pessoa de má índole. Provando isso, o homem juntou cinquenta amigos e os armou com pedaços de madeira e barras de ferro. Agora ele me paga!

Bandeira e a menina estavam se beijando, quando novamente fora incomodados pelo homem de aproximadamente de vinte e poucos anos e sua horda, disposto a dar uma “pisa” no intruso e corpulento marinheiro. Ao virar – se, largando da menina, o aprendiz percebeu estar feito, ao redor de si e sua namorada, um cerco bem fechado e, concluindo logo o que se passava, esperou o desafeto manifestar – se. Todo sujo, pois caíra no barro molhado pela chuva que despencara no dia anterior, o desafeto de Bandeira disse – lhe que ia ver com quantos paus se fazia uma jangada, juntamente com a menina. Bandeira, num gesto de protegê-la, colocou – a atrás de si e, antes que houvesse uma tragédia com ele por causa da sanha do ex – namorado, pediu a ele que a deixasse de fora, em nome do sentimento que mitria pela menina. Todos da turma concordaram, e ela saiu. A partir daí, o cerco foi se fechando e para onde Bandeira se virava só via o brilho ameaçador dos covardes e enfurecidos oponentes, dispostos a vingar de forma cruel e sádica o soco que o amigo havia levado tinha uns quarenta minutos. Percebendo a gravidade da situação em que se encontrava, Bandeira bravamente encarava a todos da turma, já suando frio, com o coração pulando – lhe pela boca, e camisa de botão da KeK encharcada por um suor pegajoso. Partiu como um trem da Central do Brasil, rápido e certeiro, contra o mais franzino da turma com toda disposição e desespero. A estratégia deu certo – rompera o cerco.

Com toda turma do seu encalço, Bandeira, atleta da Escola de Aprendizes no cabo de guerra, correu desabalado por três quarteirões, perseguido por uma chuva de palavrões, pedras e paus; até conseguir subir num ônibus que passava na ocasião e gritou quase sem fôlego, todo molhado, para o motorista tocar dali. Ainda viu a turma desistir da perseguição e depois, decepcionada, as armas improvisadas para a “pisa” depor. Eles vão me pagar... Tonto e suado, em estado de choque, Bandeira desceu do coletivo e tomou, cambaleando, o rumo da praça do Liceu, onde estavam Amorim Ventura e os marinheiros da turma.

Quando viu Bandeira chegar naquele estado de desespero e impotência, Ventura ficou preocupado com a saúde do amigo. Perguntou – lhe se queria trocar de roupa e tomar um calmante na enfermaria, par aliviar o tremor e relaxar – lhe os músculos tesos, tensos e extremecidos. Bandeira, quase sem fala, ainda sinalizou que ia se acalmar, que lhe trouxessem um gole de cerveja e deixassem – no tomar um arzinho. Ventura e Amorim estavam apreensivos. Algo muito ruim acontecera. Lentamente Bandeira, cercado pelos colegas e por um grupo de garotas com quem os marinheiros estavam ficando naquela noite, foi recobrando os sentidos, acalmando – se para relatar o que havia se sucedido. Deu o serviço completo. Ventura, líder natural, em poucos minutos reuniu todos os cariocas da ECHO – I que estavam de folga e os incitava a vingar à altura afronta feita a Bandeira.

Todos aceitaram. Vendo a movimentação estranha, o líder do numeroso grupo do Pará procurou saber o que se passava e, ao ter ciência, aderiu à causa de imediato, aumentando a leiva dos marinheiros dispostos a vingar o companheiro. Sem que percebesse, em pouco tempo, lá estava todos os componentes do quarto de serviço que folgava, de diversas naturalidades: Piauí, Maranhão, Amapá, Rondônia e Amazonas.

Acertado o plano, a estratégia para abordar a turma que quase trucidara Bandeira, Ventura indagou se o amigo reconhecia cada um dos que lhe fizera a tocaia. Aquele respondeu que sim, então, Ventura coordenando todo o grupo, com ajuda de outras lideranças regionais, combinou que iam parar o ônibus na pista e seguiam para a feirinha, lá chegando todos se espalharam., iam despretensiosamente, com o intuito de não machucar inocentes. Ao toque do apito de marinharia, trazido da Escola, reunir – se – iam e partiriam para o confronto. Havia ali perto de cento e vinte marinheiros. Bandeira ficou procurando os que lhe tocaiaram, mas que já haviam se dispersado e saído da feirinha, encontrou, apenas o desafeto, causador de toda a confusão, sozinho e sim a companhia dos amigos, para protegê – lo. Como ele pegara Bandeira na covardia, os marinheiros certificaram – se de o homem de vinte e poucos anos estava desarmado quer de arma branca quer de arma de fogo. Amorim foi na frente, para puxar confusão, como sempre fazia quando a turma dos cariocas queria tumultuar o ambiente, fosse onde fosse. O neguinho não valia nada e não aguentava um tapa, mas se garantia em Ventura e Bandeia principalmente para sua proteção Era arrogante, atrevido e gaiato em demasia nestas horas. O amigo inseparável de Ventura e Bandeira avistou o homem de vinte e poucos anos, indicado por este e começou a provoca-lo, o que não foi difícil. Piso – lhe o pé e ficou encarando, exigindo desculpas.

- Você é doido, seu nego sem vergonha! - disse agressivamente o homem de vinte e poucos anos, sem perceber que estava sendo cercado e enroscado – cada vez mais na telha de aranha viúva negra como um pobre inseto, preso indefeso e vulnerável. Amorim xingou o desafeto de Bandeira, o qual partiu para cima. Nesse instante, a voz estrondosa de Ventura, possante na ordem lucida com o cabo corneteiro fuzileiro naval Aragão, fez – se ecoar. O homem de vinte e poucos anos parou, suou frio e viu – se cercado, com Bandeira saindo do meio dos marinheiros mal encarados e prontos para acabar com ele. Bandeira caminhou lentamente e só teve tempo de dar – lhe um cruzado no rosto. O resto ficou, por conta da majurada, que o cobriu de socos, pontapés e pauladas. Depois de estar no chão, quase morto, banhado de sangue, com todos os ossos do corpo quebrados (inclusive os dentes), ainda teve um momento de consciência para ver Bandeira aproximar – se de seu corpo praticamente desfalecido e pular por mais quatro vezes com toda força, com os dois pés no tórax, que estalou, e no abdômen. O sangue espichou – lhe pela boca no mesmo instante. Não saciados na sua vontade de brigar, o restante da turma, já sem o controle de Ventura, entregue aos seus próprios instintos animais; quebrou a feirinha toda, sem deixar uma barraca em pé.

Moysés Severo
Enviado por Moysés Severo em 21/07/2021
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