A escolhida do cirurgião
"Traz a saideira ai Mendonça, porra, sou cliente antigo dessa espelunca!"
O garçom estava preocupado com João Ricardo. “Agora todos os dias deu pra beber até fechar o buteco", dizia ele.
O bar preferido era o Tropical de Copacabana, embaixo do prédio onde morava. O que começou somente às sextas, passou a se tornar uma rotina diária. Segundas, terças, quartas, quintas, todos os dias passaram a ser sexta-feira para o renomado doutor.
O excesso na bebida ia nitidamente lhe envelhecendo. Somado ao seu desleixo com a aparência, aos 45 anos parecia que já tinha 60.
Era médico cirurgião, chefe da emergência de um famoso hospital no Centro do Rio de Janeiro e reconhecidamente um dos melhores no que fazia. Mas com o passar dos anos, foi perdendo a luta para as frustrações que acumulava e acabava sempre buscando refúgio na cerveja.
"Só umazinha hoje", dizia para os colegas em plena segunda.
Passou aos poucos a ir sozinho para o bar pois ninguém aguentava acompanhar o seu ritmo.
"João está descontrolado", diziam pelos corredores os colegas de plantão.
Era casado com Maria de Lourdes, moça da mesma idade e impossibilitada pelo destino de engravidar. Diziam que parte da frustração de João vinha desse fato, pois um de seus sonhos era ser pai.
Já estava há 20 anos com a companheira, mas no íntimo sabia que não a amava. Na verdade, havia se acostumado com ela. Não achava justo abandoná-la depois de todos esses anos e esse, diziam os conhecidos, era um de seus equívocos. Moravam de aluguel num quarto e sala em Copacabana e não construíram patrimônio juntos.
Maria de Lourdes era filha de militar e havia herdado uma bela pensão de seu falecido pai, por isso, não se preocupava com o futuro. O que ganhava como jornalista “freelancer” lhe bastava pois sabia que nunca estaria desprotegida financeiramente.
Fumava 3 maços de cigarro por dia e era chegada num bom e velho uísque. Criava 5 gatos e seu estilo de vida ajudava a empurrar o marido ladeira a baixo. O cheiro de cigarro misturado com o dos gatos tornava o ambiente do apartamento intragável. Ficava ainda pior quando Maria de Lourdes abria a boca para falar e perfumava o cômodo com o seu bafo azedo de tabaco com destilado.
-Não esquece meu cigarro, cobrava ela do marido todos os dias pela manhã, exalando o seu odor característico.
“Essa mulher é um peso morto na vida do João”, dizia pra quem quisesse ouvir Jairo, seu amigo de muitos anos.
Dr. João era boa praça e apesar do alto salário que recebia, ajudava todo mundo, até quem não merecia: a mãe viúva, o vizinho deficiente, o colega recém contratado e até Mendonça, o garçom. Todos podiam contar com a solidariedade exagerada do desapegado médico. Diziam os amigos próximos que nem tudo era altruísmo e que na verdade ele não sabia dizer não. “Mais um dos equívocos do João”, diziam eles.
O resto do dinheiro ia para as despesas e para a cerveja. O doutor não tinha ambições materiais.
Ajudava a mãe viúva com uma boa quantia. O pai havia falecido há alguns anos, depois de ir definhando aos poucos em função de uma doença degenerativa. Acompanhar a evolução de sua moléstia deixou marcas profundas em João Ricardo e ele como sempre, amenizava suas dores buscando a bebida.
Trabalhando, bebendo e tolerando a convivência com Maria de Lourdes, assim João levava seus dias até o surgimento de Roberta na sua emergência. A nova médica contratada abalou as estruturas do doutor, logo em seu primeiro dia.
Linda, bem-sucedida, solteira e 10 anos mais nova. Depois de muito tempo surgia um novo interesse na vida do destacado cirurgião.
Passou a cuidar melhor da aparência, não deixava mais a barba por fazer e se atentava para estar sempre com a camisa bem esticada. Passou até a caminhar pela manhã na avenida Atlântica, pra ver se perdia um pouco de barriga. Até as inseparáveis idas ao boteco Tropical diminuíram.
Com o passar dos dias foi se aproximando da colega com cuidado, pois não queria parecer antiético ou que estava abusando de sua posição na hierarquia. Percebeu abertura e aos poucos foi se sentindo a vontade para enfim oferecer a ela uma carona... quem sabe o que poderia resultar desse gesto calculadamente singelo?
Já havia sondado com os colegas e tinha conhecimento que a moça morava em Botafogo, caminho para sua casa, o que seria uma boa justificativa para a oferta. Aguardou a hora da saída discretamente, como quem não queria nada. Quando Dra. Roberta se dirigiu à máquina de ponto, a seguiu sem alarde.
-Está saindo? Que coincidência eu também. Onde você mora?, disse ele
-Botafogo, respondeu ela.
-Caminho pra mim, aceita uma carona?, continuou João Ricardo.
-Aceito sim. O dia hoje estava bom para uma água de coco, complementou a médica dando a deixa.
João que não era bobo, entendeu o recado. O plano estava traçado: no meio do caminho sugeriria uma esticada na praia para a água de coco e o resto aconteceria naturalmente. Calculou que faria o convite na altura do Aterro do Flamengo, e seguiria direto para a famosa Princesinha do Mar.
Quem via de fora, dizia que Dra. Roberta seria a salvação da vida de João. Poderiam casar, ele finalmente teria os sonhados filhos e colocaria a vida no eixo.
Os amigos mais chegados questionavam se o médico teria coragem para tomar essa decisão. “O João largar a esposa e mudar de vida? Duvido muito!”, dizia Plínio, colega na emergência.
A verdade é que todos no setor torciam pelo doutor. Sujeito de bom caráter, excelente profissional e um amigo fiel, cativava a todos que com ele conviviam. Roberta parecia ser a pessoa ideal para a mudança em sua vida.
Seguiam pelo Aterro do Flamengo, aquela altura na reta antes da curva que leva a Botafogo. Era o momento do convite. João olhou para Roberta e soltou: “Onde você mora mesmo em Botafogo?”
“Na São Clemente, próximo ao Metrô”, respondeu ela.
O médico então, a essa altura já no bairro de Botafogo, dobrou a direita em frente ao Mourisco, ponto de referência da região, e seguiu rumo à São Clemente. Chegando no prédio da colega, olhou em seus olhos e disse:
-Chegamos, sempre que quiser a carona está à disposição.
Roberta, surpresa, agradeceu e desceu do carro, entrando em seu prédio.
João Ricardo, se xingando mentalmente, seguiu rumo à sua casa em Copacabana.
Estacionou o carro na garagem, e subiu pelo elevador. Ao entrar em seu apartamento, Maria de Lourdes dormia no sofá e junto com ela repousavam os gatos. O cheiro característico do apartamento lhe atingiu como um soco na cara.
“Já chegou João? Trouxe meu cigarro?”, disse esfregando a cara a esposa.
“Não, vou lá embaixo buscar.”, respondeu ele.
Desceu até o Tropical, e sentou na mesa de sempre.
“Fala doutor, quanto tempo. Achei que tinha se mudado”, disse fazendo graça Mendonça, o garçom camarada.
“É meu amigo, eu até queria, mas me faltou coragem. Traz a de sempre bem gelada pra mim!”, respondeu João Ricardo.
Em casa, Maria de Lourdes tomou uma dose de uísque 12 anos e voltou a dormir no sofá com os 5 gatos, aguardando o marido chegar com os seus cigarros.