WI-FI no Sertão
No sertão de Itapipoca, as labaredas tremulam no mato seco de um sítio. O vaqueiro montado no cavalo observa as chamas vivazes. Um preá passa por cima de uma cobra que rasteja sem se importar com a posição do roedor na cadeia alimentar.
O cavalo se incomoda com a quentura e é contido pelo homem sob o aperto das rédeas. Tocado pela prudência, o vaqueiro se afasta um pouco e diminui o desassossego do equino.
O sol escaldante da tarde assomado ao calor das chamas não impede que os moradores do sítio e alguns vizinhos surjam com baldes de água e grossas lonas a combaterem o fogo por resfriamento e abafamento. Jurandira, o esposo e os cinco filhos se esforçam vigorosamente contra o avanço do pequeno incêndio. No galinheiro, as aves cocoricam com os nervos à flor das “penas”.
A pequena Jandira apenas chora monitorada pela irmã mais velha que a detém pelo braço para não deixá-la adentrar a mata e procurar Pepe, o vira lata que habita a casa desde antes dela nascer. O pequeno incêndio é debelado pela agilidade dos moradores após a combustão espontânea ser avisada aos gritos por Jandira.
O vaqueiro se conservou na montaria andando de um lado para o outro até o fim do incidente orientando as pessoas.
As roupas manchadas pelas cinzas foram retiradas do varal para nova lavagem. De súbito, Jurandira avisa: - Óia, filhinha, quem apareceu!
— Pepeeee!
Jandira desce o batente, corre e abraça o cão.
— Ai! Tem carrapichos.
À boquinha da noite, o mugido de um garrote abafa o crepitar das brasas por alguns segundos. Sobre o fogão à lenha, assa um tucunaré pescado naquela manhã. O primo da cidade, havia chegado na noite anterior e conseguiu pescar apenas duas piabinhas, fato que o fez desistir da pescaria e brincar saltando de um tronco e mergulhar na água barrenta. A diversão era tão excitante que Gael não percebeu a hora passar e ao sair do açude, seus lábios, mãos e pés estavam engelhados.
Jurandira prepara um ovo caipira na manteiga para o sobrinho, pois é o seu prato preferido. Ao aproximar das férias escolares, a tia acumula dezenas de ovos para o garoto levar consigo no retorno para casa. Gael se desconforta ao mastigar uma pedrinha no meio de uma porção de arroz. Das mariposas que rondam a lâmpada, uma delas cai dentro do copo de suco de seriguela e é retirada delicadamente pelo menino.
Após a ceia, os primos se acomodam no peitoril da varanda e Gael dispensa toda sua atenção aos causos contados pelos primos. Alguns contos de assombração, embora repetidos, o lobisomem ou o gritador, ainda causam surpresa no garoto, pois os primos sempre acrescentam algo mais em cada narração da mesma história. Nessa noite, a novidade é a visagem vista por Jessé debaixo da oiticica ao se banhar no córrego, meses atrás.
Vasculham o céu estrelado e localizam o Cruzeiro do Sul, única constelação conhecida pelo grupo. – Não aponta, Gael! Senão, nasce uma verruga no dedo.
De repente, Gael saca o telefone celular do bolso e toda sua atenção é
direcionada para as mídias sociais, curtidas e repostas aos comentários nas suas postagens. Maquinalmente, os primos também pegam os celulares. Jandira, deitada na rede, entretida num joguinho eletrônico, mantém-se indiferente ao roçar de Pepe em busca de carinho.
Passados alguns minutos de silêncio, Jessé pergunta: - Gael, você já viu o vídeo dos Gatos Sertanejos?
— Não! Envia pra mim.
Aos poucos, o diálogo entre os primos se restabelece entrecortado pelas sucessivas interrupções das notificações nos aplicativos instalados no celular de Gael.
Texto publicado na página 96 da Revista Devires Poéticos. v. 1, n. 1, jan./jun. de 2021 / Um toque de encantamento
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