BRASÍLIA VELHA
Havia poucos integrantes daquela congregação tão estimados como o Irmão Jorge. Sessenta e sete anos, cinquenta de convertido, sem ianalfabeto, mas cheio de sabedoria. Criou com sua esposa doze filhos, dos quais dez vingaram. Uma menina morreu com menos de um ano e um menino faleceu em um acidente com bicicleta
aos dez anos. Todos os outros estudaram no mínimo até o terceiro colegial, trabalhadores e continuaram frequentando a igreja. Uns mais assíduos que outros, mas se nem os dedos da mão são iguais, imagine os filhos, assim dizia Seu Jorge. Nunca tiveram luxo, ele pedreiro, ela boleira, sempre tudo foi muito contado, mas era dificílimo ouvirem ele reclamar. No convívio diário era sempre amável e cordial, fosse com quem fosse.
Muito trabalhador, só não trabalhava aos domingos. Estes eram sagrados, pertenciam a Deus! Pegava sua Brasília velha e enchia de irmãos para fazer visitas, para participar de construções de novas igrejas, para carregar doações e material de construção, ou qualquer outra coisa relacionada a obra de Deus. O grande problema era que seu carro não tinha a mesma disposição que ele. Várias vezes o deixou na mão, muitas vezes nos piores lugares possíveis. Isso quando não passava a vergonha de ter que usar os irmãos como motor de arranque. Os filhos até queriam ajudá-lo a comprar um carro mais novo, mas este era um dos seus poucos defeitos,.Não aceitava ajuda financeira de ninguém, nem dos filhos.
Um dia, depois de passar uma grande vergonha por ficar na estrada com uns irmãos vindo de fora, chegou em casa muito entristecido. Estacionou o carro na rua, entrou sem conversar com ninguém e foi direto para o quarto. Se ajoelhou e orou ao Senhor:
"Oh Pai, me ajuda! O Senhor sabe do meu desejo de Te servir, da vontade que eu tenho de Te agradar. Mas o meu carro não me ajuda Pai. Eu estou cansado de passar vergonha, de querer ajudar e acabar atrapalhando. Me ajuda com esse carro Senhor..." KABUM!!!!! Ouviu um barulho enorme vindo da rua. Quando saiu ficou pasmado. Uma betoneira enorme perdeu a direção e bateu na sua Brasília. Bater era um eufemismo. O seu carro velho simplesmente estava achatado, igual a uma pizza, debaixo do caminhão. Pela primeira vez na sua vida teve dúvidas sobre a sua fé. Isso não tinha acontecido, nem nos piores apertos financeiros, nem nas mortes dos seus filhos. Conversou com os policiais que atenderam a ocorrência, com os funcionários da construtora que era dona do caminhão e com os da Companhia de Engenharia de Tráfego com sua habitual cordialidade. Assim que conversou com o último foi dormir, chorando.
No outro dia era domingo. Saindo da sua rotina dormiu até tarde, não acompanhou seus netos no culto para jovens. Acordou ao som da campainha:
"Bom dia Seu Jorge. Podemos entrar? Nós somos advogados da construtora. Nós queremos conversar com o senhor para podermos fazer um acordo."
"Sim, sim entrem. Sentem aqui na poltrona. Desculpa não ter nada para oferecer, mas todo mundo saiu e eu acordei agora. Vocês falaram sobre um acordo?"
"Isso. Um acordo que possa abranger possíveis danos materiais e psicológicos que o senhor e sua família possam porventura ter sofrido por conta deste lamentável incidente. Nós propomos um valor e você se compromete em cartório a não acionar nossa empresa futuramente.". Mostraram-lhe um cheque com um valor trinta vezes maior do que valia sua Brasília.
"Tudo bem." Respondeu ainda atônito.
"Esperamos o senhor em nosso escritório amanhã às 10:00hs para a realização de todos os trâmites. Aqui está o nosso cartão. Um bom dia."
Assim que eles saíram Jorge voltou correndo e se ajoelhou em sua cama. Chorava, se alternando em agradecer e pedir perdão pelo seu momento de descrença.