NAS CATACUMBAS
O serviço de funeral fora lindo. A Palavra havia sido maravilhosa. João 11, em especial o versículo 25: Esclareceu-lhes Jesus: "Eu sou a ressurreição e a vida. Aquele que crê em mim, mesmo que morra, viverá;". A explanação também foi abençoada. Tudo terminou em apenas duas horas e ele não via a hora de levar o ancião para casa. Deveria ter-lhe emprestado o carro. Agora ficaria a mercê de todos aqueles que viessem lhe pedir orientações ou conversar.
Para a sua surpresa, ele se desvencilhou de todos rapidamente e o convidou para passear pelo cemitério:
-Sabe que eu cresci aqui nessa cidade?
-Não.
-Pois é. Vim muito neste lugar na minha adolescência e juventude, até Deus me chamar. Os muros eram bem mais baixos, Não existia essa portaria, era um portão de aço que ficava aberto dia e noite. Os túmulos e mausoléus estavam menos preservados. Mas de resto está tudo igual. Este é o cemitério mais antigo da cidade. Da época dos Bandeirantes ainda. Esta subida enorme que fizemos, metade não era asfaltada.
-Mas o que você vinha fazer aqui, irmão?
-Apesar de ter nascido na graça, eu nem sempre fui crente. Dei muito trabalho quando criança e já na adolescência comecei a usar drogas. O dom da música eu usei para tocar guitarra em uma banda de punk rock. Fez muito sucesso até. Dentes Estragados era o nome.
-O senhor está brincando, não é?
-Nosso maior sucesso era uma música com só um refrão: "Dentes Estragados, Dentes Estragados. Isso não é música, é só barulho!".
Os dois riram. Continuavam caminhando, o ancião visivelmente procurando algo. De repente abriu um largo sorriso:
-Finalmente te achei, amigo!
Pararam na frente de uma catacumba de mármore preto. Na lápide estava escrito: Luíz Alvares de Ramos Noieir, amado filho, 1955-1982. Embaixo uma outra placa solta de bronze com uma figura segurando um microfone e os dizeres: "Morto Forever":
-Este rapaz aqui, que todo mundo conhecia como Morto, era o guitarrista e vocalista da banda antes de mim. Muito boa gente. Nunca vi alguém que usasse tanta droga. E que fosse tão amado ao mesmo tempo. Quando ele morreu em um acidente de carro, provavelmente bêbado, foi uma comoção. Veio praticamente toda a cidade. A gente já vinha aqui no cemitério fazer umas festinhas. Só que ficava longe das catacumbas. Por incrível que pareça, não por medo, mas por respeito. Outros tempos.
-Mas nós nos conhecemos há mais de vinte anos e você nunca contou essa estória.
-Porque eu também nunca entendi direito o que aconteceu. A partir do momento que ele foi enterrado aqui, este passou a ser o nosso local de encontro. Sentávamos em cima do mármore, quando bebíamos jogávamos um pouco para ele. Quando esticávamos umas carreiras de cocaína, fazíamos sobre seu jazigo e uma sempre era para ele. Quando estavam sendo preparadas era comum alguém dizer: Não esquece a do Morto. Mas tudo isso só era permitido aqui, porque tínhamos certeza que ele aprovava. Eu mesmo ajudei a bater em uns dois que usaram drogas em outros túmulos. Perdi minha virgindade aqui. Com uma menina que transou com dez caras de uma vez só. Eu era só mais um na fila.
-Que coisa horrível irmão. Como foi que Deus te libertou.
-Essa era a parte complicada. Parecia ser coisa do inimigo. Nunca consegui compreender. Uma noite nós estávamos aqui, usando drogas e bebendo, quando percebemos que começou a subir uma espécie de névoa branca. Até aí tudo bem. Afinal, é o que se espera em um cemitério. De repente ouvimos a voz dele claramente nos dizendo: Porra! Querem parar de me dar drogas e cachaça. Eu estou aqui fazendo o maior esforço para sair do inferno e ir para o purgatório e vocês ficam me puxando para baixo!
-Ficamos apavorados, mas a gota d'água foi o vulto dele vir se aproximando por entre aquela fumaça branca. Todo mundo saiu correndo. Eu pulei o muro de trás e fui rolando um barranco enorme que tem depois dele. Quebrei duas costelas e um braço. Assim que sai do hospital fui para a igreja.
-Mas como pode ser isso, irmão? Sabemos que todos estão dormindo, esperando a volta do Senhor.
-Bem, a administração daqui é da Igreja Católica, da paróquia da igreja alí em baixo. Então, antes de presidir o serviço de funeral, fui conversar com o padre. Rapaz muito simpático, por sinal. Depois de tudo acertado, perguntei para ele se ele já ouvira falar sobre o caso. Ele caiu na gargalhada! O antecessor dele contou como afugentou vários drogados que vinham aqui através de truques simples de cinema. Que se fantasiou de fantasma do meu amigo para nos assustar.
-Que loucura!
-Concordo. Agora eu estou aqui pensando. Hoje eu sou crente porque, um dia um padre fingiu ser o espírito do Morto. Os caminhos de Deus são misteriosos.
Ficaram por ali mais meia hora antes de irem embora.