Pequenas histórias 241

A todos os garçons do Monarca.

“Farrapo humano é um belo filme sob a batuta do gênio Billy Wilder, com as inesquecíveis interpretações de Ray Milland e Jane Wyman, abordagem realista e profunda num retrato devastador do efeito do álcool sobre seus dependentes, ganhador de quatros Oscar, é um filme imperdível.”

Estava lendo quando pediu:

- Instrumento, por favor?

- O que? O senhor me chamou?

- Sim. Você não é o Instrumento?

- Não, meu nome é Lira.

- Então, Lira é um instrumento medieval. É uma harpa minúscula usada pelos cantores medievais. Não sabia?

- Não, não sabia.

- Enquanto Roma ardia em chamas, o pederasta Nero, com sua lira, cantava uma ode em homenagem a cidade.

- Pederasta, senhor?

- Sim, pederasta. Não sabe também o que é?

- Não sei senhor.

- Veado, bicha, gay.

- Eu hein!

- Aliás, Nero mandou incendiar Roma para que ele pudesse com sua lira cantar em louvor a sua tão querida cidade.

- É mesmo! Mas eu não sou gay coisíssima nenhuma.

- Vai ver que você tem algum parentesco com o criador da lira.

- Sai para lá, que conversa hein! O que o senhor quer afinal, não posso ficar falando besteira o tempo todo.

- Ei, calma, meu querido, não se zangue. Traga-me mais uma dose.

Lira se afastou, voltando pouco depois com a bebida. Ele ergueu o copo a altura dos olhos. Mentalmente fez um brinde:

- Um brinde ao gênio Billy, um brinde ao seu farrapo humano em que estou me tornando. Maldita pinga. Um brinde a você também. Ah! Também não esquecemos, um brinde ao Lira pela paciência em me atender.

Num único gesto, entornou o conteúdo do copo para dentro da garganta, estalando a língua.

- O instrumento, por favor – chamou o garçom numa voz pastosa.

Lira quase o mandou a merda, mas lembrou das dívidas, aluguel, luz, leite para as crianças, fechou a cara e foi atender o sujeito.

- Quanto foi? Quanto devo não pagar?

E riu um riso fedendo a pinga.

- Cinco doses, dez reais.

- O que? Cem reais? Vinte reais a dose? Que ladroeira é essa?

- A dose é dois reais, o senhor tomou cinco doses, portanto são dez reais.

- Ah, tá certo. Pago para você mesmo?

- Não, pague no caixa, por favor.

Levantou cambaleando, quase caiu ao tropeçar no pé da mesa.

Lira pensou:

- Vai procurar sua turma e espero que não volte mais.

Ao limpar a mesa, viu que o sujeito tinha esquecido a revista. Lira pegou a revista e leu na capa em letras garrafais:

“Farrapo humano é um belo filme sob a batuta do gênio Billy Wilder. Todos envolvidos no alcoolismo deveriam assistir.”

Pensou em devolver, mas o sujeito já tinha saído. Jogou a revista no lixo, voltou sua atenção ao serviço, esquecendo o incidente.

Pastorelli
Enviado por Pastorelli em 11/07/2021
Código do texto: T7297184
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2021. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.