UM ELEFANTE EM UMA LOJA DE CRISTAIS
-Bom dia! Paulo, não é? Seja bem vindo! Por favor entre aqui no meu consultório.
A moça, de seus lá vinte e poucos anos, era encantadora. Não que fosse um espetáculo de mulher, mas era bonita e sua voz exalava uma jovialidade cativante. Foi este frescor e o fato dela estar vestida com seriedade que o impediram de desistir da coisa toda. Orgulhava-se do papel que representava de "homem das antigas", o último dos machões! Toda vida lhe sugeriram procurar um psicólogo. Sua resposta estava sempre na ponta da língua:
- Eu só vou se me arranjarem uma consulta com o Analista de Bagé. Porque eu sou como ele: mais ortodoxo que Minancora e Biotônico Fontoura! Terapia eficiente é a dele: a do joelhaço!
Ria as pandegas depois. Apesar do tipo bronco que gostava de fazer, era dono de uma cultura invejável.
O consultório era sóbrio, o que o agradou. Duas cadeiras confortáveis, uma estante repleta de livros técnicos de psicologia e de filosofia, quatro quadros nas paredes: duas pinturas modernistas que ele desconhecia, uma reprodução da Academia de Atenas de Rafael e uma foto icônica da filósofa Hannah Arendt com um cigarro na mão. A menina era culta ou queria passar está impressão. Decidiu "chutar o pau da barraca" para ver como ela se saía.
- Por favor, pode se sentar. Quer alguma coisa. Água, café, chá?
- Não obrigado.
Sentou- se esparrachado.
- Quase fui embora quando cheguei na porta.
Sem perder a pose, ela se sentou na outra cadeira e perguntou com uma expressão ao mesmo tempo alegre e intrigada
- Sério? Porquê?
- Esta casa no meu tempo era um bordel. Eu era um frequentador assíduo.
- Verdade? Agora está explicado porque o aluguel é tão barato, mesmo sendo nesse bairro. Isto também nos dá um ponto para começar. Quando você diz minha época, está se referindo a quando?
A menina era boa! Não perdeu a compostura. Nesse momento decidiu confiar.
- Na minha adolescência e juventude. Perdi minha virgindade aqui e também trabalhava aqui a primeira mulher que eu gostei de verdade.
- Nossa, que interessante. O senhor está com quantos anos agora?
- 45.
- Senhor Paulo, vamos ser honestos. O senhor não veio aqui para relembrar suas aventuras de menino. Fala a verdade, o quê fez o senhor procurar um psicólogo?
Engoliu em seco. Direta...
- Eu gosto muito de contar estórias, então se prepara. Quando eu era adolescente, meu herói era meu professor de história. Petista raiz, ex metalúrgico. Também sambista. Velha guarda, detestava pagode. Autor teatral premiado. Cheguei a fazer teatro amador com ele. Sempre dizia que só precisava de psicólogo quem não possuía amigos. Bem...
Ficou pelo menos um minuto em silêncio, claramente lutando para conseguir falar. De sopetāo respirou fundo e falou, quase gritando:
- E agora, depois de já ter cruzado o Cabo da Boa Esperança, eu não tenho nenhum amigo!
- Nenhum? Você não mora aqui em São José do Rio Preto desde sua adolescência?
- Nasci em São Paulo, vim para cá criança e voltei para lá para fazer faculdade. Só voltei faz quatro anos para ajudar minha mãe e tentar salvar meu casamento.
- Então você tem família, você não consegue conversar com eles?
- Que piada! Minha mãe não me deixa terminar uma frase. Meu irmão é o motivo porque não acredito em astrologia; somos do mesmo signo, sagitário, e conseguimos ser espelhos distorcidos um do outro. Absolutamente opostos em tudo! Quando fui embora dei uma enorme "banana" para cá, prometendo nunca mais voltar. Então não tenho amigos de infância.
- Mas pelos lugares que passou, não manteve nenhuma relação mais sólida.
- Não, fiz vários amigos. Muitos! Só que sempre os perdi. Esquecendo-os quando a vida melhorava ou abusando da boa vontade deles quando estava na pior.
- E sua esposa?
- Não disse que voltei para cá para tentar salvar meu casamento? É como ter que trocar toda a transmissão de um carro com ele em movimento. Eu coloquei tanto galho na cabeça dela, a magoei tanto, que paira sobre minha cabeça uma espada, igual Damócledes. Qualquer palavra errada e eu desperto o: Você quer que eu lembre?!
- Por que ainda está casado com ela então?
- Por que não suporto a idéia de outro homem perto da minha filha adolescente, de meu menino chamando outro cara de pai, de ter que dividir de forma injusta tudo que eu conquistei. Já vendi nossa casa em São Paulo para comprar outra aqui. Aí separa, para eu ter que morar em pensão, ou pior, com minha mãe! Para quê? Para ela ficar folgada no fruto do meu trabalho? Não! Fora que eu também não tenho paciência mais para namorar. E...
- E... Qual é o outro problema?
- Eu gosto de ir a igreja. Tenho o sonho de ser, de me sentir um crente. Se separa tem que casar de novo para transar. Eu não sou mais moço. Gosto de programa de debate de futebol, mas parei de assistir por que os comerciais são: ou de agência para regularizar dívida ou CNH, ou de clínica ou remédio para impotência! Não aguento ficarem me lembrando meus problemas o tempo inteiro!
- Será que esses programas não têm essas propagandas justamente porque muitas pessoas tem as mesmas dificuldades que as suas?
- Grande sacada! Então o fato de milhões passarem fome deveria me aliviar quando o meu estômago ronca! Que ser só mais um deveria me consolar! Me poupe...
- Você é bem amargo, não é? Não conversa com os outros frequentadores da igreja onde você vai.
- Só coisas superficiais. Não dá para discutir essas coisas com eles. Fora que as coisas que eu já fiz são feias, muitas delas degradantes. Tenho medo de todo mundo ficar sabendo e começarem a me tratar de outra forma. No serviço é ainda pior. Sou chefe entre vários chefes. Não dá para confiar nem em quem está abaixo, nem em quem está no mesmo nível e nem em quem está acima. A sensação é de estou em uma série policial americana: tudo o que você disser pode e será usado contra você!
- Nossa! Não será que você está sendo paranóico?
- Se você tivesse se ferrado tantas vezes como eu me ferrei, entenderia... A sensação é de que sou um elefante em uma loja de cristais. Para qualquer lugar que eu me mover vou destruir tudo.
- Um... Nosso tempo acabou. Mas eu vou deixar uma sugestão até nossa próxima sessão. Ou mesmo se você não volte.
- Qual?
- Converse com seu Deus. Não só em oração, mas o tempo todo, como se ele fosse um amigo na sua frente. Você vai ver que isso vai te fazer muito bem.
- Isso é maluquice! Todo mundo vai achar que eu fiquei louco se me verem falando sozinho!
É, pode ser. Mas eu te garanto que é a melhor forma de manter a sanidade. Até a próxima consulta. Aí você me conta se funcionou.
Saiu do consultório mais confuso do que entrou. Mesmo assim sabia que voltaria na próxima semana.