A FÁBRICA

Eu teria cinco, talvez seis anos de idade.

Numa manhã, meu pai acabara de sair para o trabalho na e minha mãe estava varrendo o jardinzinho que havia na frente da casa enquanto eu me distraia juntando as “castanholas”, que era como chamávamos as sementes das Acácias que sombreavam a praça onde morávamos.

Foi então que, pela primeira vez, me lembro de ter prestado atenção aos sons que me rodeavam. E percebi, entre os cantos, já conhecidos dos Bem-te-vis e o chilreio dos Pardais, aquele som absolutamente indecifrável para mim. Era um som grave e lamentoso, como se duas flautas Andinas tocassem em uníssono, uma mesma nota, gravíssima, em tom menor, num lamento comprido, meio soprado e que terminava no ar, mas ficava dentro da gente ecoando, ecoando...

Perguntei à minha mãe que barulho era aquele. Ela, sem parar de varrer, respondeu:

- É a fábrica.

(Nossa! Que resposta mais esclarecedora!)

Ao perceber que eu ficara na mesma, completou:

- É o apito da fábrica chamando as pessoas para trabalhar.

Perguntei se era onde meu pai ia trabalhar e ela me disse que não. Onde ele trabalhava não havia apito; e que deveria ser alguma fábrica de tecidos, muito comuns no Ipiranga, naquela época.

Senti um certo medo daquele som hipnótico e monótono que “chamava as pessoas”.

Comecei a prestar atenção todas as manhãs, no apito da fábrica.

Nunca fiquei sabendo de qual fábrica seria; só sabia que, diariamente, infalivelmente às 7:00h em ponto, o som melancólico: -Púúúúúúúúúúúúú..... chamava as pessoas...

Hoje, quase 60 anos após aquela manhã, em meio à enorme poluição sonora que envolve a rua onde moro, no bairro vizinho ao da minha infância, entre o “terremoto” causado pelas gigantescas jamantas que descem a rua parecendo demolir as casas com a trepidação de suas pesadas caçambas metálicas, o chiado dos pneus dos automóveis passando, passando, passando, passando..., os escapamentos das motos trepidantes, buzinas inconformadas querendo passar na frente do quinto carro à sua frente no semáforo, sirenes desesperadas abrindo caminho a grito, a conversa alta e rocambolesca em “dialetos indecifráveis” a caminho do trabalho, os latidos amontoados de todos os cachorros do bairro, o “sapateado” dos pombos sobre a calha do meu telhado acompanhado pelo arrulho: úúúú – úúúú – úúúú...., ainda os mesmos Bem-te-vis e os Pardais, helicópteros voando baixo, a procura de flagrantes para algum canal de televisão, aviões a jatos a plenas turbinas, dando o máximo para conseguirem subir quase que como foguetes, saindo do meio da cidade e alcançando o céu sem esbarrar em nenhum dos prédios que insistem em se erguerem cada vez mais próximos às pistas do aeroporto de Congonhas, no meio de toda essa sinfonia de sons, acabo de reencontrar o mesmo apito melancólico chamando as pessoas para trabalhar.

Evidentemente outras pessoas, muitas das quais nem prestam muita atenção ao chamado, com os fones de seus celulares enterrados nos ouvidos trazendo, toda a nossa vida na minúscula telinha... nem ouvem mais outros sons...

Seria o mesmo apito, que milhares de vezes soou seu melancólico sinal, que mais hipnotiza do que dinamiza quem o ouvia?

Meus ouvido, com a idade, podem não ser mais os mesmos; mas a impressão que aquele apito choroso me causa, ainda hoje é a mesma: medo de ser atraída por aquele som misterioso e ser engolida pela incomensurável FÁBRICA, que devorou os meus sonhos de criança...

Cléa Magnani
Enviado por Cléa Magnani em 01/07/2021
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