VOO A4803

- ALBERTO VASCONCELOS e CLÉA MAGNANI

Aeroporto de Guarulhos, três horas da madrugada de uma segunda feira nevoenta e fria. Rafael sentado na sala de espera do desembarque internacional, olhou mais uma vez para o painel de chegadas e partidas. A indicação de PREVISTO para o voo A4803 da Hemisfério Sul Linhas Aéreas era agora SEM PREVISÃO.

O que teria acontecido? A última ligação de Eneida, sua noiva, fora do aeroporto de Luanda quando ela informou que estavam embarcando depois do pouso forçado pelas circunstâncias de pane num dos motores, mas que estava tudo bem, segundo informaram os representantes da empresa e que o voo deveria durar em torno de sete horas. Porém, essa previsão se esgotara a 01:00h e no guichê da companhia aérea, ninguém sabia explicar o motivo de tão longo atraso vez que se tratava da travessia do oceano em voo direto.

Rafael foi a única lanchonete aberta e estava tomando o cafezinho mais caro de sua vida quando ouviu o aviso de emergência ecoar por dentro do aeroporto. A voz mecânica informava: Todos os presentes devem permanecer no saguão do andar térreo. Afastem-se das janelas e abandonem o estacionamento. Sirenes de bombeiros e sons de viaturas em alta velocidade encheram a madrugada de apreensão. Pela TV da lanchonete, ligada em canal aberto, depois da vinheta de plantão, o locutor visivelmente abalado, dava notícias sobre o pouso de emergência que iria acontecer a qualquer momento. A câmera instalada não se sabe onde, mostrava alternadamente, a cabeceira da pista repleta de viaturas para entrarem em ação quando o avião tocasse o solo, as chamas vermelhas cada vez mais próximas e o rastro de fumaça negra em contraste com a névoa branca que inundava tudo.

O pânico amalgamado com a sensação de impotência tomou conta de Rafael. A sua mão tremia tanto que foi impossível tomar o restante do café. Ele, como todos os presentes, estava perplexo ante a iminência do desastre e com o destino incerto das pessoas envolvidas.

A bordo, afivelada em sua poltrona com o encosto na vertical, sem sapatos, sem os óculos mais que necessários, Eneida estava na posição recomendada para o pouso.

Ela havia visto quando, algum tempo atrás, teve início o incêndio na primeira turbina, que apesar de ter sido imediatamente desligada, permaneceu em chamas. O comandante informou que a velocidade e a altitude estavam sendo reduzidas. Que os passageiros permanecessem calmos porque tudo estava sob controle, que aquele avião, verdadeira maravilha da engenharia aeronáutica, seria capaz de voar com apenas uma turbina e que, apesar do transtorno, eles ainda tinham três turbinas funcionando perfeitamente. Que estavam próximos do destino e que os passageiros deveriam atender a todas as instruções do pessoal de bordo caso houvesse necessidade de pouso no oceano. Mas essa aparente tranquilidade durou pouco, porque a outra turbina da mesma asa prorrompeu em chamas algum tempo depois desse comunicado.

Apenas os que tinham algum parente ou conhecido no avião, poderiam avaliar o desespero e a angústia em participar daquela cena. Na tela da TV via-se a enorme aeronave numa descida aparentemente tranquila sobrevoando os bairros próximos ao aeroporto. Pelo saguão, ouviam-se exclamações de horror dos que aguardavam o voo. Uma senhora, que esperava o filho, a nora e dois netinhos não suportou e, em prantos, agarrando-se à jaqueta de Rafael, escorregou até o chão desmaiada. Amparada por ele, foi colocada num sofá. Grandes caminhões do Corpo de Bombeiros esparramavam uma grossa camada de espuma de um material antifogo sobre a pista. Tudo era muito rápido, menos a chegada do avião.

Quando as rodas tocaram a pista, totalmente desequilibrado, numa quase bamboleada a asa bateu no solo sendo despedaçada, arrancando assim as turbinas em chamas. Desgovernado o avião saiu da pista, passou por cima das divisões luminosas, rumando direto para o prédio do aeroporto, causando ainda mais gritaria e pânico em todos que estavam assistindo a tragédia ao vivo pela TV. O gigante quebrou os fingers e atropelou os tratores de manejo de bagagens e finalmente parou quando o nariz se chocou com o prédio arrebentando as vidraças e abalando a estrutura do andar superior cujo teto desabou parcialmente.

Dentro do avião, o caos estava instalado. Ouviam-se gritos desesperados pedindo para sair. Os danos na fuselagem provocados pelo choque, dificultavam a abertura das portas. Os bombeiros usaram escadas para alcançar as portas traseiras e as da asa que não fora destruída. Instalaram escorregadores infláveis e redes de proteção para a retirada dos passageiros. Eram mais de 200 pessoas entre passageiros e tripulantes. Muitos não queriam esperar e começou um tumulto dentro do avião. Pessoas desmaiadas precisavam serem levadas escada abaixo, mas a confusão e os corredores estreitos dificultavam a saída e todos eram encaminhados para as várias ambulâncias a fim de receberem os primeiros socorros. Na área danificada do prédio, brigadistas se colocaram em locais estratégicos com extintores manuais para evitar o surgimento de focos de incêndio nas lojas, livrarias ou restaurantes.

Rafael não se conteve, correu para a pista, mas não viu Eneida. Falou com o comandante da operação e recebeu a notícia de que não havia mais ninguém lá dentro. Ainda mais desesperado, pediu ao bombeiro para entrar com ele, pois não podia acreditar no que diziam. Enquanto os bombeiros discutiam sobre a entrada de um civil no veículo sinistrado, coisa totalmente fora de propósito, o rapaz subiu a escada chamando pela noiva e foi abrindo as portas das toaletes, até que uma delas não abria. Havia alguém lá dentro. Os dois bombeiros que entraram para retirá-lo à força, se necessário, arrombaram a porta e acharam Eneida desacordada e toda molhada.

Depois, no hospital, ela contou que com o tumulto instalado desde o momento em que a asa do avião foi despedaçada, ela começou a passar mal, entrou na toalete e se molhou porque todos gritavam que iriam morrer queimados e ela sabia que a toalete era o único lugar onde havia água, mas o medo a fez desmaiar. Souberam que um homem e duas senhoras que saíram desacordados, haviam tido parada cardíaca e perderam a vida.

Nos demais apenas ferimentos leves, escoriações e o desejo de que tudo aquilo tivesse sido apenas um pesadelo...