A morte da minha avó foi um momento muito doloroso para mim. Vou guardar nossas lembranças para sempre. Ela era uma mulher dinâmica, carinhosa, gentil e adorava a vida. Nunca vou esquecer seus abraços aconchegantes, seus conselhos sábios, seu sorriso doce e a proteção que eu sentia em sua casa.
          Um mês após o seu desencarne, minha tia nos convidou para ir ao casarão dela e escolhermos alguma lembrança antes de tudo ser desfeito. Assim nós fizemos. Eu peguei um oratório que tem dentro uma imagem de Nossa Senhora que muitas vezes eu e ela rezamos juntos antes de dormir. Ninguém fez nenhuma objeção e fui embora para casa.
          Em casa ao limpar o oratório descobri um fundo falso e dentro dele tinha três cartões postais, escritos por minha tia Helena na década de 70. Pelas datas tinham sido escritos antes dela morrer.

Rio de Janeiro 20/12/1971
Querida mamãe
Muitas saudades da senhora. Não se preocupe comigo eu estou bem. Tenho escrito pouco porque é perigoso já que estou na clandestinidade e tenho que tomar muito cuidado. Estou com outro nome mas sempre serei sua Leninha.
Infelizmente não posso visitar a senhora no natal mas estarei aí em espírito e peço que a senhora me inclua nas suas orações. Um companheiro me disse ontem que a clandestinidade nos salvou. Espero que ele esteja certo.
Mãezinha um feliz natal e um ano novo cheio de paz, amor e saúde. Da sua filha que te ama muito.
Leninha.

          A história de tia Helena foi trágica. Após o golpe de 64, ela que era estudante, começou uma militância estudantil contra regime militar, que se transformou em uma luta mais atuante que culminou no AI-5 e consequentemente a clandestinidade. Meu avô, que era a favor do regime tentou de todas as maneiras tirá-la do Brasil, mas fracassou, o que o fez romper definitivamente com ela.
Rio de Janeiro 25/01/1972
Querida mãezinha
Muitas saudades. Hoje fiz um bolo de chocolate e cantei parabéns para a senhora. Te desejo toda a felicidade do mundo mãezinha.
Não tenho muitas novidades para contar. A clandestinidade salva mas ao mesmo tempo aprisiona. Saio apenas o necessário, quase não falo com ninguém e tenho que evitar chamar atenção para que não nos reconheçam e nos denunciem. Um dia mãezinha nós venceremos essa guerra e tudo vai voltar ao normal
Não se preocupe comigo pois estou bem.
Da sua
Leninha.

          Não tenho a menor idéia de como minha avó recebeu esses cartões postais já que meu avô tinha proibido que o nome da minha tia fosse pronunciado dentro de casa. Guardar os postais dentro do oratório deve ter sido simbólico para ela e com certeza uma idéia genial. Ninguém pensaria em mexer nele. O amor de mãe falou mais alto do que a esposa submissa ao marido.
Rio de Janeiro 03/03/1972
Querida mãezinha
Muitas saudades da senhora. Infelizmente vou ter que sair do Brasil. O governo espalhou fotos minhas e de alguns companheiros por toda a cidade e estou com muito de ser presa. Não dar mais. Às vezes tenho a impressão que eles venceram.
Ainda não sei para que país eu vou, mas assim que chegar lá, mando uma carta enorme para a senhora. Prometo. Acho que vou para o Chile. A viagem é mais segura.
Reze por mim minha mãe e nunca esqueça que eu lhe amo muito.
Você é a melhor mãe do mundo.
Leninha

          Tia Helena morreu no dia 18 de abril de 1972 metralhada numa blitz tentando sair do Brasil. Seus companheiros conseguiram fugir. Minha avó ficou devastada e meu avô não foi ao enterro, nem a missa de  setimo dia. Eles passaram a se falar apenas o necessário e viviam praticamente como estranhos. Minha avó apenas uma vez disse-me que eu era muito parecido com minha tia. Viveu seu luto em silêncio.
          No movimento das diretas já ela quebrou o silêncio, saiu às ruas para representar tia Helena e quando Tancredo Neves foi eleito presidente do Brasil ela foi ao túmulo da filha e disse: Nós vencemos minha filha. O Brasil está livre.
                                                                                 
José Raimundo Marques
Enviado por José Raimundo Marques em 25/06/2021
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